Análise - Novos dados contra antigas hipóteses sobre a queda do crime em São Paulo

Análise publicada originalmente no Estadão Noite A queda generalizada nos indicadores criminais no Estado de São Paulo em 2015 desafia as principais hipóteses sobre os fatores que têm causado essa variação. Ao longo dos últimos 15 anos houve uma queda contínua na taxa de homicídios, com uma breve interrupção dessa tendência nos anos 2009 e 2012, mas que foi retomada a partir de 2013 e confirmada mais uma vez este ano. Os dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública trazem ainda uma novidade importante: caíram também os principais crimes economicamente motivados como os roubos (-21%) e furtos (-11%) de automóveis, roubo de carga (-1%), roubo de bancos (-10%) e latrocínio (-8%) entre outros. Os homicídios retomaram a tendência de vinte anos de queda, mas a redução dos crimes economicamente motivados é ainda incerta.  Há muitas dúvidas sobre o que teria causado o bom desempenho da política de segurança em São Paulo e pretendo discutir algumas das hipóteses que têm sido aventadas para explicar esse processo.  A primeira hipótese é que os dados divulgados pela Secretaria de Segurança não têm qualidade e são manipulados. A ONG Conectas avalia, por exemplo, que os dados não diferenciam o número de ocorrências do número de vítimas e que, portanto, uma chacina com dezenas de mortos seria registrada como uma ocorrência de homicídio. Outros avaliam ainda que o número de homicídios deveria incluir o número de policiais mortos e o número de mortos pela polícia. Com essas manobras, o número de homicídios ficaria menor do que de fato é, argumentam.  Essas críticas não resistem a dois cliques de mouse. Na mesma tabela em que a Secretaria de Segurança divulga o número de ocorrências de homicídio, encontramos o número de vítimas, e na página com as estatísticas quadrimestrais, é possível encontrar o número de pessoas mortas pelas polícias Civil e Militar. Qualquer um que discorde dos critérios adotados pela secretaria de segurança no cálculo de sua taxa de homicídio pode calcular sua própria taxa.  Para tanto, podemos contar com dados que têm sido publicados de forma transparente e com qualidade crescente como atesta o próprio Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma organização não governamental independente, que classifica São Paulo no grupo dos Estados com a melhor qualidade de dados de segurança pública do País.  A hipótese de manipulação dos dados pode ser avaliada se compararmos as informações da secretaria de segurança com os dados dos sistemas de saúde publicados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde, o DATASUS. Para nossa sorte, dispomos de mais de uma fonte de informações sobre os homicídios e podemos compará-las para determinar se há indícios de desvios. Os dados do DATASUS são computados a partir do atestado de óbito e seguem uma metodologia internacional padronizada de classificação da causa de morte. Com alguns cuidados metodológicos, é possível usar os dados da saúde para estimar a taxa de homicídios entre 1979 e 2013 (último ano disponível da série). O que vemos no gráfico é muito interessante: o crime violento cresceu contínua e rapidamente em São Paulo entre 1979 e 1999. Mas as coisas começaram a mudar a partir de 2000, e, ao longo de 13 anos, a taxa de homicídio acumulou uma redução de 68% no Estado. Essa é a primeira evidência de que a manipulação dos dados talvez não seja uma hipótese muito útil nesse caso.  A comparação entre os dados da saúde e da segurança pública revela que há uma forte correlação estatística entre as taxas de homicídio das duas fontes (maior do 0,9 em um indicador cujo valor máximo é 1). Ou seja, qualquer que seja a fonte de dados, a tendência observada é a mesma. As mortes violentas aumentaram na década de 1990 e diminuíram após 2000. Os dados da Saúde e da Segurança mostram a mesma curva, porém em patamar diferente. Os números de mortos por agressões e consequentemente as taxas de homicídios da saúde são sistematicamente mais elevados do que os divulgados pela Secretaria de Segurança. Em 2013, por exemplo, a taxa de homicídios era de 12,2 por 100 mil habitantes segundo a Secretaria de Segurança (incluindo os latrocínios e mortos pela polícia) e com base nos dados da saúde a taxa foi de 13,9 (731 homicídios a mais). Critérios diferentes levam a estimativas diferentes, mas ambas são igualmente confiáveis e válidas. Tudo depende do uso a que se destinam. Nas estatísticas da saúde, são computados os casos de mortes por causas externas decorrentes de agressões, e no caso da segurança, são contadas as vítimas nos inquéritos policiais de homicídio. As diferenças são produzidas em decorrência dos critérios distintos de classificação utilizados, e não por manipulação. No balanço final, os dados da saúde permitem uma estimativa melhor sobre a prevalência do homicídio e de seus impactos na sociedade. Mas isso não significa dizer que os dados da segurança não são confiáveis, apenas seguem critérios jurídico-policiais de classificação. E o mais importante: seguem os mesmos critérios ao longo do tempo. Se não fosse assim, se faltasse confiabilidade aos dados da segurança, não haveria uma correlação positiva e extremamente forte com os indicadores produzidos a partir dos dados da saúde.  Agora podemos pensar um pouco sobre as hipóteses que tratam das causas da diminuição do crime. Em 2015, além da redução dos crimes violentos, houve uma redução relevante dos crimes economicamente motivados e um aumento notável da produtividade policial. O número de pessoas presas por mandado (o que indica aumento da investigação policial) aumentou 20%, as apreensões de entorpecentes 8% e número total de prisões no Estado também 8%. Esses indicadores mostram o enorme desafio que é gerir o sistema de justiça criminal em São Paulo. Em 2015 foram presas 163.843 pessoas no Estado, o que equivale a 13.650 presas por mês. Muitos são liberados após a identificação, mas uma parte significativa vai engrossar o estoque de 226 mil presos do Estado. Nada mobiliza tanto a repulsa de parte dos especialistas acadêmicos quanto esses números. 'Estamos enxugando gelo'; 'só repressão não funciona'; 'o custo é alto demais'; 'há uma cultura de encarceramento em massa em São Paulo'.  Variam as expressões, mas o sentimento é o mesmo: não vamos resolver o problema do crime apenas encarcerando infratores. Porém, ao que parece, estamos conseguindo fazer exatamente isso. A política de segurança pública que favorece a atividade policial tem evitado que milhares de vida sejam perdidas a cada ano. Isso ocorre simplesmente porque as polícias, o Ministério Público e a Justiça estão produzindo mais; mais prisões em flagrante, mais investigações, indiciamentos e condenações de infratores. E o mais insólito é que sempre que isso acontece, parece ocorrer também uma diminuição do número de crimes. A equação pode parecer estranha para alguns, mas quanto mais intensa a atuação repressiva das polícias e da Justiça e quanto maior a probabilidade de condenação, menor tende a ser o número de crimes cometidos.  A indiferença com que muitos pesquisadores acadêmicos olham para esses processos básicos operados pelo sistema de justiça criminal obscurece a relevância dos resultados alcançados pela política de segurança em São Paulo. Os instrumentos utilizados para aumentar a produtividade das polícias não são simples de ser construídos. Sistemas de metas de desempenho, integração de bases de dados e dos sistemas de inteligência, integração com os municípios, tecnologias de monitoramento eletrônico e realocação do efetivo policial nos pontos de maior concentração de crimes foram algumas das ações realizadas pela polícias e pela Secretaria de Segurança Pública ao longo de mais de uma década de esforços acumulados. No entanto, tudo isso passa praticamente despercebido aos olhos dos especialistas a quem a sociedade recorre na esperança de encontrar análises prudentes e equilibradas sobre os fatos. É fundamental contar com a visão crítica de especialistas, mas está passando da hora de termos na academia pesquisadores capazes de entender como funciona 'por dentro' o sistema de segurança pública e sobre as políticas que podem induzir o aumento de sua produtividade. Outra hipótese que está em dificuldades diante dos resultados de 2015 é a popular 'hipótese PCC'. Não é exatamente uma hipótese, é mais um arroubo de raciocínio crítico desenfreado cujas consequências seus propagadores geralmente ignoram, mas que é bastante apreciada no meio acadêmico. Terão agora os partidários dessa tese que explicar como o PCC, além de ter ajudado as polícias a reduzir o número de homicídios durante a última década, está agora ajudando a apreender mais drogas e armas, a diminuir o número de roubos a banco, de cargas e de automóveis, além de facilitar a prisão de 160 mil de seus simpatizantes em apenas um ano. Balanço final: os resultados de 2015 na segurança pública de São Paulo são muito interessantes para serem jogados contra hipóteses que precisam de um recall. 

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Por Leandro Piquet Carneiro

* Leandro Piquet Carneiro é professor do Instituto de Relações Internacionais da USP e membro do Núcleo de Segurança Pública - Centro de Liderança Pública

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