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Se não bastasse o terremoto...

Situação do povo curdo na região contribui para aumentar os problemas já gigantescos após a tragédia recente

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Em meio ao bombardeio de notícias sobre a tragédia na Turquia, uma foto me tocou especialmente. Nela há a imagem de um senhor de meia idade sentado na montanha de destroços do que era seu prédio em Gaziantep, epicentro do terremoto de 7,8 graus na escala Richter que abalou o país. Ele se encontra encolhido pelo frio (uma fina camada de neve cobre o lugar) e apenas o braço estendido para o lado.

Foto: Adem Aktan/AFP 

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Olhando com detalhe, vemos que ele está de mãos dadas com alguém que não é possível ver em meio aos escombros. Ao ler a legenda, fico sabendo que se trata de um pai que se recusava a abandonar a filha mais nova que faleceu durante a madrugada.

O resgate do corpo só foi possível horas depois.

Todos estamos ainda chocados com as inúmeras histórias trágicas do terremoto que atingiu a Turquia e a Síria há poucos dias. O número de mortos já passa dos 30 mil e provavelmente terá aumentado quando você estiver lendo essa coluna.

Foram milhares de prédios desabados, quarteirões destruídos e cidades inteiras arrasadas. Especialistas falam na possibilidade de 180 mil pessoas ainda estarem soterradas. Há relatos de sobreviventes presos entre os destroços de seus lares enviando mensagens pelas redes sociais informando sua localização e implorando por socorro.

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O que torna esse drama ainda pior é o fato da região enfrentar no momento um inverno especialmente rigoroso, com temperaturas frequentemente abaixo dos zero graus. Tempestades e nevascas são comuns ao longo do dia, o que atrapalha o trabalho das equipes de resgate nesse delicado momento emergencial.

Além disso, a parte da Síria que foi mais atingida é onde ficam cidades como Aleppo e Hama, particularmente afetadas pela guerra cívil no país que já dura mais de dez anos. Ou seja: é uma área com infraestrutura comprometida, problemas sérios de acesso e muitas pessoas em situação de vulnerabilidade.

Isso ainda faz com que as cidades vizinhas também sejam afetadas, uma vez que viram abrigo para parte das mais de 10 milhões de pessoas que fugiram do país desde o início do conflito. A região como um todo é conhecida pelo grande número de refugiados e também de deslocados internos, estejam eles fugindo da guerra e até da perseguição religiosa do ISIS, que há alguns anos tinha uma cidade próxima, Raqqa, na Síria, como uma das capitais de seu sanguinário Califado. Ou da opressão ao povo curdo. E é esse aspecto que gostaria de destacar em mais detalhes.

Uma visão particular da região

Estive nessa região, conhecida como Curdistão, em 2015. O objetivo era contar a história dos curdos, o maior povo do mundo sem a sua nação reconhecida. A área abrange partes da Síria, do Irã, do Iraque e da Turquia, onde eu estava. Mais precisamente em Diyarbakir, a maior cidade de maioria curda na Turquia e, agora, uma das mais afetadas pelos tremores.

Foto: Ilkyas Akengin/AFP 

Em diferentes frentes e de várias formas, os curdos lutam por reconhecimento e autonomia. Na Turquia, são considerados guerreiros da liberdade ou terroristas sanguinários (depende pra quem você pergunta). Assim como o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), lendária organização política curda, e listada como grupo terrorista por algumas nações, como a Turquia e os Estados Unidos.

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Quando estive na região, os curdos buscavam mais reconhecimento e autonomia, ainda que de forma pragmática. Com o sonho de um estado autônomo - em uma região que abrange parte dos territórios de ao menos quatro nações - cada vez mais distante, eleger representantes no parlamento turco parecia ser mais realista.


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E assim eles fizeram, depois de décadas de luta, conseguiram colocar alguns representantes da causa curda entre os principais assentos da política turca. Apenas para ver o presidente turco, Recep Erdoğan, eterno algoz dos curdos, revogar seus direitos dias após o resultado das eleições.

Nas ruas da região, vi um povo orgulhoso de suas origens e perseguido historicamente. O que invariavelmente acaba estimulando um sentimento nacionalista exacerbado. Ao longo dos anos os curdos foram proibidos de ensinar seu idioma nas escolas turcas, viram inúmeras incursões militares em seu território, o desmonte oficial de sua cultura e sofreram com o preconceito que é comumente relegado às minorias. E isso está afetando o momento atual.

Começam a surgir relatos de que a resposta do governo turco a essa tragédia não está sendo tão eficiente devido à tragédia ter ocorrido em boa parte do que é considerada a região do Curdistão. Muitos esperavam um posicionamento mais ágil e forte do presidente Erdogan, e destacam o abandono que a região se encontrava ainda antes do desastre. O que teria contribuído para tantos desabamentos e vítimas.

Há relatos de censura e bloqueios à internet ainda durante os momentos iniciais (e fundamentais) das operações de resgate. Oficialmente, dizem que para coibir a desinformação e notícias desencontradas durante as ações de socorro. Mas locais de diferentes regiões no Curdistão denunciam o silenciamento das denúncias contra o governo turco que ganharam ainda mais força nesse momento de tragédia. A resposta a um evento trágico é sempre decisiva para as ambições de políticos em qualquer contexto e país do mundo (especialmente de um presidente que já estendeu por mais de 15 anos a sua permanência no poder).

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Fato é que esse já pode ser considerado uma das maiores tragédias da história da Turquia e uma das maiores catástrofes humanitárias deste século. O número de mortos ainda vai subir. E muito!

Então, vou aproveitar para fazer um ‘jabá do bem’. Não é nem um jabá diretamente para mim, o que seria oportunismo com um drama dessas proporções (algo que dá lugar reservado e VIP no inferno). Mas é que através da empresa de ajuda humanitária que sou co-fundador, criamos um canal direto para levar doações a organizações não-políticas e não-governamentais que estão atuando diretamente no resgate e reconstrução das áreas mais impactadas pelo terremoto, com atenção especial para a população refugiada na região.

Se você puder ajudar, não é difícil descobrir como nas redes sociais da @VVolunteer_br. Juntos somos mais fortes que desastres naturais ou o preconceito.

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