Num tórrido e claro 23 de janeiro, há exatos cem anos, morria no Rio o mais notável artista gráfico do período imperial e um dos mais destacados militantes da causa abolicionista. Seu nome era Angelo Agostini (1843-1910), um italiano que chegara aqui ainda adolescente e que ao longo de 43 anos fizera uma das mais longas carreiras da imprensa nacional. Chamá-lo genericamente de artista gráfico - designação que não existia na época - é uma tentativa de enquadrar sinteticamente um talento que se destacava em atividades tão diversas como as de caricaturista, pintor, fotógrafo, repórter, crítico de costumes, editor, empresário e agitador político. Introdutor das histórias em quadrinhos entre nós, o artista deixou como legado uma obra vasta, diferenciada e, sobretudo, irregular. Seus traços estão fixados em pelo menos 3,2 mil páginas de jornais e revistas.Agostini era sobretudo um cronista visual dos últimos anos da Corte imperial e das aceleradas transformações pelas quais passou o Rio nos primórdios da República. A combinação dessa sensibilidade com a de cidadão indignado geraria a parte mais contundente de seu trabalho, as denúncias de torturas, mutilações e assassinatos cometidos por senhores contra seus escravos. A força de seus traços como documentarista é comparável à dos desenhos de Rugendas e de Debret, nos primórdios do século 19.Ele começou sua carreira lançando e organizando jornais e revistas de circulação restrita, num tempo em que a imprensa era produzida de forma quase artesanal. Na virada do século, o panorama se altera. A chegada da máquina rotativa, de novas formas de reprodução e a ampliação do público leitor a transformam em empreendimento capitalista de porte. O artista deixa de ser dono de pequenas publicações e torna-se colaborador de grandes empresas editoriais. Mais do que uma mudança funcional, Agostini vivenciou duas fases decisivas da consolidação da imprensa brasileira. Nos últimos anos de sua vida profissional, o artista mostrou-se paulatinamente intolerante com manifestações populares. Reclamava, em suas páginas, dos gritos dos vendedores ambulantes, exibia um surpreendente racismo em suas opiniões e clamava por reformas urbanas no Rio.O que poderia representar uma trajetória incoerente com sua militância antiescravocrata, expressa o comportamento de uma vertente importante do movimento abolicionista entre a elite intelectual e política do império. A libertação não se fez apenas por motivos humanitários, mas como parte de um difuso projeto de desenvolvimento, que pressupunha trabalho assalariado, imigração europeia e mercado interno. Sob tal ponto de vista, a escravidão era cara, ineficiente e pouco produtiva. Não havia, assim, uma identidade maior com a população negra. Agostini morreu uma semana depois de um grande parceiro de atos e de ideias no movimento que desembocou no 13 de maio, Joaquim Nabuco (1849-1910). Gilberto Maringoni é doutor em História Social, professor da Faculdade Cásper Líbero e pesquisador do Ipea