Qualificar assaltos como o ocorrido em Araçatuba na lei nº 13.260/16, a chamada lei antiterrorismo, divide as opiniões de especialistas em direito penal ouvidos pelo Estadão. Devido à quantidade de explosivos, a Polícia Federal informou que não descarta a possibilidade de enquadrar como terrorismo os ataques que deixaram três mortos no interior de São Paulo, mas ainda depende de mais investigações.
A legislação define terrorismo como ações tomadas “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. Ainda segundo a lei, os atos de terrorismo, por sua vez, consistem em “usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa”.
No caso de Araçatuba, além da grande quantidade de explosivos utilizados, a polícia está considerando o fato de eles terem sido espalhados pela cidade, colocando em risco a vida da população. Foram resgatados, até a tarde desta terça-feira, 100 quilos de explosivos. De acordo com a Secretaria da Segurança Pública do Estado, foram achados 93 artefatos e 70 bastões de emulsão para produção de bombas. Do total, 29 artefatos estavam em um caminhão usado no ataque contra o Banco do Brasil e que foi deixado em frente à agência.
“Isso (enquadrar o crime como terrorismo) é uma possibilidade que não está descartada. Mas a coordenação da investigação aguarda mais elementos para definir o que eles chamam de ‘adequação típica’ para fechar a questão”, informou a PF de Araçatuba. A reportagem entrou em contato com a superintendência regional da PF em São Paulo e ainda aguarda retorno.
De acordo com o professor doutor de processo penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Claudio Langroiva, o terrorismo tem outros pressupostos além do uso de explosivos ou mesmo de materiais bélicos. “São ações destinadas à desestabilização do Estado de Direito e à ordem constitucional vigente. Não estão ligados necessariamente à apropriação de bens, salvo se destinados a subsidiar atividades contra o Estado”, explica.
Langroiva entende que os crimes cometidos em Araçatuba envolvem atuações de organizações criminosas de base, que se sustentam a partir do funcionamento do Estado que produz bens e permite assim que o roubo, a subtração e a apropriação possam continuar ocorrendo. “O terrorismo pressupõe um conteúdo político que não está, a princípio, identificado no que soubemos dos fatos ali ocorridos”, destaca, alertando ainda que a ampliação do conceito de terrorismo para utilizar de “meios mais gravosos” no combate à criminalidade “não parece adequado”.
“Aplicar instrumentos excepcionais, destinados a situações de terror, para crimes patrimoniais, ainda que gravíssimos, é desvirtuar o direito penal de cunho liberal, para um direito penal do inimigo”, ressalta o professor. Ele defende que os explosivos utilizados não tinham exatamente objetivo político de causar terror e instabilidade social e política, criando medo e desestruturação social, mas de servirem de mecanismos e obstáculos para impedir ações de repressão ao crime patrimonial que estava sendo cometido.
O advogado criminalista Daniel Gerber acredita que associar o terrorismo ao que ocorreu em Araçatuba é "uma análise rasa, midiática, que confunde a natureza do ato terrorista com a quantidade de armas utilizadas na execução de um delito qualquer”. Segundo ele, isso pode inclusive banalizar “um conceito extremamente complexo e político”, o que não contribui para avanços legislativos que se debruçam sobre o tema.
“No Brasil, inclusive, onde armamento pesado do Exército é encontrado em mãos de traficantes, teríamos, por tal conceito, o maior grupo terrorista já formado na história. Uma lástima, portanto, a comparação”, acrescenta Gerber.
Por outro lado, o promotor de Justiça e professor de direito penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie Fabio Ramazzini Bechara acredita que é “perfeitamente sustentável” enquadrar os crimes cometidos em Araçatuba na lei antiterrorismo. “Existe um certo preconceito e mito de que no Brasil não existe terrorismo. Os parâmetros utilizados comparam com coisas que são completamente diferentes. Mas o que tem que determinar se é ou não são as circunstâncias de cada caso. O que se viu em Araçatuba não dá para enquadrar como crime comum”, defende Bechara.
Ainda que reconheça que a motivação seja um aspecto que “pode ser questionável”, o promotor entende que aplicar a legislação comum da proporção do que ocorreu em Araçatuba pode ser “um incentivo”, já que os criminosos recebem uma “repressão menos rigorosa do que teriam com a legislação antiterror”. “Pelos métodos utilizados, me parece razoável, ainda que a motivação tenha sido eminentemente econômica, enquadrar como terrorismo”, destaca Bechara.
O promotor defende ainda que a qualificação como terrorismo repercute para além do efeito imediato. “Isso tem um fator simbólico importante, de posicionamento por parte do sistema de Justiça em relação a um assunto que nunca ganhou grandes dimensões no País. A partir do momento que o Estado brasileiro passa a se posicionar de uma forma mais ousada, aplicando e interpretando preceitos legais vigentes, isso mostra uma virada de chave”, diz o promotor, defendendo que é importante destravar uma “agenda antiterror” no Brasil. / COLABOROU JOSÉ MARIA TOMAZELA
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