Nos 44 anos que se passaram, a promessa foi cumprida. Grandes filmes, discussões e polêmicas marcaram a existência do Cine Belas Artes, que fecha suas portas hoje com a exibição de clássicos do cinema em suas salas.
E a polêmica prometida no cartazaconteceu logo na estreia. Um mês antes da abertura, Florentino Llorente, da Companhia Serrador e da Sociedade Amigos da Cinemateca, responsável pela programação, falava em uma ousada e diversa programação para o novo espaço. Além dos filmes, a sala de 1.400 lugares receberia "pequenas apresentações de teatro, música e dança" eteria iluminação adequada e sistema sonoro que facilitem palestras e conferências".
Evocando a eterna discussão sobre cinema comercial x cinema de arte,Llorente fazia "blague", como se dizia à época, dizendo que "para os cinéfilos, os exibidores sempre são uns gangsters". E para mostrar que não era um, afirmava quea decisão de instalar "um grande cinema devotado ao filme de arte foi ditada pela necessidade de São Paulo ser possuidora de uma sala de grande categoria com programação especial, a exemplo do que acontece em outras grandes cidades do mundo".
E continuava: "O filme de arte que, antes, era um verdadeiro tabu para o exibidor, hoje, graças a ação de cinematecas, cine-clubes, imprensa especializada, realizadores nacionais, debates e estudos nos meios estudantis, exibidores e distribuidores mais esclarecidos, é até mesmo solicitado por uma platéia em formação e que, em matéria de qualidade artística é mais exigente". Ou seja, dizia que acreditava que os filmes de artes tinham viabilidade comercial.
Dias depois, o Estadão noticiava que os filmes cotados para a estreia eram"Os Amores de um Loura", de Milus Foman, "Julieta dos Espíritos" de Fellini (se a cópia chegasse a tempo) ou "Bravos da Arena" de Francesco Rosi. "Não podendo precisar ainda o nome da fita, os dirigentes da SAC só podem afirmar que será uma obra de grande valor cultural".
Enquanto a atração era escolhida, a inauguração prevista para o fim de junho foi adiada para segunda quinzena do mês seguinte. No dia 1 de julho, uma notinha no Estadão anunciava o escolhido. E, surpresa: nada de Milus Forman, Fellini ou Rosi. A fita que inauguraria "o maior cinema de arte da América do Sul" seria a comédia "Os Russos Estão Chegando". Dirigido por Norman Jewison, o filme americano havia disputado vários Oscars e inaugurado o festival de Cannes de 1966.
A justificativa para a escolha contrariava todo o discurso de Florentino Llorente :"Sentiu a SAC que tendo sua lotação de 1.400 lugares - não poderia sujeitar o Belas Artes a uma programação restrita, orientada somente aqueles que aceitam somente o cinema como grande arte. Por esse motivo foi escolhida a película, que corresponde à amplitudade de perspectivas do Belas Artes e os objetivos culturais da SAC."
Se parecia não cumprir o prometido na inauguração, o Belas Artes aos poucos foi impondo o seu estilo e não faltaram os chamados filmes de artee nem os chamados filmes comerciais nesses anos todos de programação. Mesclando, mostrou na prática que essa divisão é uma grande bobagem. O que vale é o prazer de assistir um bom filme.
Com a passar do tempo, as polêmicas sobre a programação saíram de cartaz. O Belas Artes deixava de ser assunto cultural e passava a ser notícia nas páginas dedicadas a problemas urbanos.
Em 1981, o cinema foi alvo de uma operação da Prefeitura, que exigia a readequação de 4.100 prédios da cidade, segundo novos padrões de segurança. Setecentos deles eram teatros, salas de baile, restaurantes e cinemas, que deveriam obter o devido alvará de funcionamento. Sem a papelada em dia, referências importantes do circuito cultural paulista viram-se ameaçadas. Salasde cinema, como o cine Astor, do Conjunto Nacional, foram interditadas por falta de segurança e as três salas do Belas Artes também não escaparam à inspeção.
Dentre as irregularidades técnicas, a fiscalização apontou que a Sala Portinari apresentava "grande carga de material combustível, como o revestimento das paredes em madeira..." a sala Vila-Lobos era a mais segura, mas as escadas eram estreitas e sem sinalização. A sala Mário de Andrade era a que apresentava maior perigo, só tinha uma saída.
Apesar dos problemas, ele prosseguiu aberto por possuir extintores de incêndio e hidrantes em perfeito estado de funcionamento, informou o Corpo de Bombeiros à época. Ao Belas Artes foi dado um prazo de vinte dias para realização dos reparos exigidos. Decorrido o prazo, nenhum relatório oficial detalhando as medidas a serem aplicadas havia sido formalmente entregue pela Prefeitura. Sua programação seguia em frente.
"Duas horas e meia de fogo. Está destruído nosso mais importante cinema de arte", noticiava o Jornal da Tarde em 11 de maio de 1982.Portas e cofres arrombados e gavetas reviradas apontavam para uma ação criminosa. A prefeitura relembrou que suas salas estavam em condições irregulares, mas a perícia concluíra que o incêndio não fora acidental. Foram descobertos, no dia seguinte ao desastre, três pontos distintos em que o fogo havia sido originado.
Um ano depois,o Estadão anunciava: "Das cinzas, o novo cine Belas Artes reabre", para duas semanas depois, em 15 de junho, divulgar uma nova interdição. Suas seis salas, modernas e sofisticadas, extrapolavam um projeto que originalmente previa apenas cinco.
Em dois de julho, cineastas e produtores protestavam contra a demora em reabrir as salas, afinal, o novo espaço pós-incêndio já despontava como uma nova referência em cinemas da cidade. Ampliado e modernizado, figurou como uma espécie de antecessor do que viriam a ser os espaços multiplex atuais. A reivindicação seria atendida ao final de outubro, quando as bilheterias voltaram a vender ingressos para "Danton:, o processo da Revolução", "Retratos da vida", "Sargento Getúlio","Casanova e a Revolução".
Desde então, várias reformas e modificações foram feitas. Seguindo tendências, o pomposo nome ganhou nos últimos anos a companhia de nome patrocinadores à frente.
A Lei Cidade Limpa acabou com a festa dos cartazes pintados que eram quase como assistir a um filme. Impossível dizer quantos paulistanos que provavelmente nunca entraram no cinema tiveram contato - através de um título e uma imagem - com obras que jamais veriam enquanto o ônibus lotado passava pela Consolação: "Bagdá Café"?, "Daunbailó"?, "Quando Éramos Reis"?...
Alguns ficaram tanto tempo em cartaz que se incorporavam a paisagem da cidade. "9 ½ Semanas de Amor" bateu recorde de permanência em cartaz, quando isso queria dizer exatamente isso: que um cartaz ficou ali pendurado por um tempão. Mesmo quem não assistiu, pôde, diariamente, ver uma sensual Kim Basinger quando ia e voltava do trabalho ou passasse por ali de bobeira.
Ocupando o edifício onde antes funcionava outro cinema, o Belas Artes mostrou nesses anos que um cinema são os filmes ali programados. E não um prédio.
#Pesquisa e texto: Luiz Rangel e Edmundo Leite
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.