As primeiras obras, hoje denominadas por "arte africana", foram expostas ao mundo ocidental ainda em meados do século 19, mas o foram por motivo perverso. Os chamados "impérios coloniais europeus", tentando justificar o sanguinário uso de força durante suas invasões, trouxeram estatuetas e máscaras como provas do atraso cultural e intelectual dos povos africanos que se refletiriam nas proporções irrealistas desses exemplares. Nas máscaras não estariam representados os traços humanos por incapacidade de técnica ou inadequada percepção dos artistas africanos. As reproduções do corpo humano eram desajeitadas, grotescas mesmo, devido à incapacidade desses povos de medir, de avaliar.Incapazes foram esses europeus do século 19, que não perceberam a profunda simbologia, a expressão mística e a abstração, expressas magistralmente nessas aparentes distorções da realidade e que só viriam a ser um recurso consciente da arte ocidental séculos depois de cotidianamente vivenciada por centenas de culturas negras da África.Pois bem, a reversão de opiniões não tardou. Foi na França, onde se concentrava então imensa e criativa comunidade de artistas e intelectuais, que a arte africana explodiu de maneira avassaladora, no despontar do século 20. Fernande Olivier, companheira de Picasso, explica: "Eu creio que foi Matisse quem primeiro descobriu o futuro valor artístico dessas peças africanas, depois foi Derain. Subsequentemente, Picasso ficou fanatizado, coletando, acumulando estatuetas, máscaras e fetiches de todas as regiões da África." Outros afirmam que foram Gauguin e Cézanne que introduziram a Picasso a arte africana.Uma outra versão, que até certo ponto dá suporte àquela de Fernande, diz que fora Vlamick o primeiro a receber três ou quatro máscaras, uma delas a "Fang", que fascinou Picasso até o fim de sua vida. Em seguida teria mostrado Vlamick o seu achado a Derain, Matisse e ao próprio Picasso.Mas não foram esses três grandes os únicos a recorrer às artes africanas como fontes de inspiração. Gauguin, Braque e com eles os escritores Gertrude Stein, Apollinaire, Cocteau e Cendrars se tornaram verdadeiros propagandistas das artes africanas.A influência africana na arte do século 19 é imensa. Sem as máscaras geométricas de Dogon não haveria cubismo, ouso dizer. E de onde teria Picasso extraído os traços revolucionários das Demoiselles d"Avignon? Todavia, a influência incontestável da arte africana sobre as inúmeras correntes que caracterizavam estas inquietas primeiras décadas do século 20 não se restringe a este período particular, mas se estende até nossos dias. A exposição Algumas Expressões da África, na Galeria Beaubourg, em 1996, mostrou essa relação entre a arte contemporânea de Arman, Beselita, Basquiat, César, Di Rosa, Keith Hering, Penck, Spoerri e Tinguely e a africana, que se estende desde expressões abstratas até o mais imediato figurativismo. O primeiro dessa lista, Arman, possui uma coleção com mais de 300 peças, quatro vezes maior que aquela de Picasso. Diz ele: "Meu diálogo com a arte africana está em relação com a convicção de que a criação artística decorre de um fundo comum da humanidade."Esta arte que já foi chamada de "primitiva", desafortunadamente, por Lévi-Strauss e corrigida por Malraux para "primordial", não encontra, entretanto, a mínima apreciação neste nosso Brasil, maior componente da diáspora africana do planeta. Enquanto nos EUA, o segundo maior contingente dessa herança, dezenas, senão centenas de espetaculares coleções dessa forma essencial de expressão artística da humanidade estão disponíveis em museus e coleções privadas, no Brasil não há uma única acessível ao público. E isto é lamentável não apenas porque é uma herança do brasileiro que, em pelo menos 50%, assim se reconhece, mas também porque é esta forma de arte um patrimônio essencial da humanidade.Pois bem, está chegando a hora de, pelo bem da autoestima do negro brasileiro, de seus descendentes mestiços, e do brasileiro em geral, que não fiquemos apenas em efêmeros dias ou semanas de festejos da "consciência negra". Abundam no Brasil grupos universitários e centros de pesquisas sobre artes europeias, mas não há quase nenhuma pesquisa sobre artes e povos de nossa principal e maior herança cultural e genética. Por que seria? Será que ainda somos estigmatizados pelos obsoletos conceitos desenvolvidos durante o colonialismo eurocêntrico? Ou, talvez, seja por mera ignorância desse legado fabuloso que constitui a arte negra. Comecemos por um autêntico museu de arte africana, um museu de verdade e não um circo, que abrigue e exponha obras fundamentais e patrocine grupos de pesquisas, e que, assim, mereça a denominação de Museu da Cultura Afro-Brasileira. Rogério Cezar de Cerqueira Leite é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo
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