Ativista indígena de Santa Catarina é criador de produto pioneiro: uma enciclopédia de seu povo

Jucelino de Almeida Filho fundou neste ano o Portal de Saberes, site inovador que reúne toda a história e cultura da comunidade Laklãnõ-Xokleng. Ele agora quer nacionalizar o projeto

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Por Fabio Tarnapolsky
Atualização:

Quando Jucelino de Almeida Filho, de 27 anos, saiu da terra catarinense onde foi criado com toda a cultura Laklãnõ-Xokleng para seguir seu sonho de cursar jornalismo em uma universidade federal, em 2018, na UFSC, ele já tinha um objetivo em mente: resgatar a história de sua comunidade indígena. Quatro anos depois, surgiu o Portal de Saberes, um site pioneiro no Brasil que não só traz toda a memória do povo, como reúne trabalhos artísticos e acadêmicos em muitas plataformas diferentes.

Nascido em São Paulo e registrado no município de José Boiteux, no interior de Santa Catarina, o paulistano carrega em seu sangue a ascendência de sua mãe e avós. Criado junto aos Guarani e Kaingang e às aldeias Bugio, Coqueiro, Figueira, Kóplág, Palmeiras, Pavão, Plipatól, Sede, Takaty e Toldo, leva consigo a resistência do povo Laklãnõ-Xokleng, que sofreu um grande massacre em 1904, quando bugreiros - como eram chamados os matadores de indígenas no Vale do Itajaí - exterminaram todos que lá viviam.

Jucelino é descendente dos Laklãnõ-Xokleng, que sofreram um dos piores massacres indígenas da história, e ingressou na UFSC em 2018 (Foto 1: Rodrigo Barbosa/Foto 2: Fernando Xokleng) Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

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Esse fato ressoa até hoje, pois a comunidade é uma das mais ativas na reivindicação das terras onde seus antepassados habitavam, e contra o marco temporal em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF). E o portal de Jucelino faz parte da história moderna, pois além de ser uma espécie de Wikipedia da causa, como ele mesmo chama, também cumpre papel jornalístico acompanhando as lutas de seu povo.

O estudante de comunicação buscou a prática desde cedo, se aperfeiçoando em escrita, elaboração de pautas, captação de informações e, principalmente, audiovisual - sua paixão. “Aproveitei todas as chances que eu tive de fazer exercícios, e tudo sobre o meu povo. Fui trilhando meu caminho por ali, buscando espaços, primeiro nas mídias da própria universidade”, disse. Criar algo do zero ainda não estava nos planos. “Esperava que eu fosse ativista na causa, mas não tão diretamente”.

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“Imaginava que trabalharia com esporte ou algo do tipo, mas quando surgiu a chance com o site, com o cinema indígena, as coisas viraram”, relembra Jucelino.

A ideia do Portal de Saberes foi ficando mais forte à medida que o paulistano se aprofundava na reportagem em vídeo e produzia pequenos documentários. Em 2019, ele conheceu a cineasta Bárbara Pettres, que o procurou para produzir um filme na terra Laklãnõ-Xokleng, sobre sua história, para o Prêmio Catarinense de Cultura.

“Veio a ideia do edital e ela me perguntou o que eu queria levar para a comunidade. Eu disse que queria criar uma mídia que mostrasse tudo que tivéssemos de bom, tudo que produzíamos de conhecimento”. Inicialmente, a ideia era reunir informações sobre todos os povos de Santa Catarina, mas os recursos financeiros eram escassos. Então, focaram em José Boiteux.

Jucelino “mergulhou” no que foi uma busca por tudo que seus irmãos criaram, que incluía trabalhos artísticos, canções, estudos, teses, culinária, dentre muitas outras especificidades.

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Pensando em chamar a atenção de crianças e adolescentes, focou em uma estética visual agradável e que remetesse aos Laklãnõ-Xokleng. Tudo avançava muito rápido, até que veio o segundo grande empecilho, além do dinheiro: a pandemia de covid-19. “Eu perdi dois tios muito importantes para mim no caminho e fiquei muito triste. Demos uma pausa pro luto”, recorda.

Jucelino em entrevista à imprensa no dia do lançamento do Portal de Saberes (Hans Denis) Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

Ele e os colegas logo retomaram o projeto e lançaram o Portal de Saberes na UFSC, em um dos momentos mais realizadores para Jucelino, mas também cansativo. “Foram muitos itens que as pessoas (da comunidade) entregaram e virou uma biblioteca. Digitalizamos muitas fotografias, restauramos várias para estarem para sempre no site. O processo de construção foi o mais gratificante, e também o que mais desgastou.”

Elogiada por lideranças indígenas, a equipe do site é procurada até hoje por professores para que lá sejam colocados materiais históricos. Assim, ele é constantemente atualizado e cada vez mais enriquecido. “A gente aceita todos os tipos de produções que falam sobre as culturas dos que vivem lá, é bem amplo. Também sempre incentivamos nossos artistas compartilhando-os nas redes sociais.”

Dança e cantos

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Uma das seções do Portal de Saberes é a de danças e cantos, com vídeos de rodas e apresentações postados no YouTube. Uma das publicações mostra crianças performando o cântico Laklãnõ-Xokleng em 21 de setembro, no chamado Dia da Reflexão - data em que a comunidade propõe recontar a história da execução de seus antepassados pelos bugreiros, antes chamada de “pacificação”.

Culinária

A página de culinária mostra desde fotos das comidas produzidas na aldeia até uma tese sobre a gastronomia do local - intitulada “A Alimentação Tradicional Laklãnõ-Xokleng”, apresentada na UFSC. Outro material é inteiramente focado a detalhar, em imagens, todo o processo do cultivo de alimentos até chegar ao consumo.

Plantação e cultivo na terra Laklãnõ-Xokleng (Reprodução/Portal de Saberes) Foto: Reprodução/Portal de Saberes

Linguagem

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Para quem se interessa em aprender a linguagem tradicional, a seção dedicada no site é um prato cheio. Lá, destacam-se três teses de doutorado: “Elementos Fundamentais da Gramática Laklãnõ”, “Vivências de Escritas Entre os Laklãnõ-Xokleng” e “Aspectos Morfossintáticos da Língua Laklãnõ-Xokleng ‘Jê'”, apresentadas na Universidade de Brasília (UnB), UFSC e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), respectivamente.

Realização

Com mais 13 páginas além das citadas - dentre seções e sub-seções, Jucelino pode dizer que sua missão como divulgador da causa foi cumprida. “Eu senti muito orgulho, porque eu ainda não me formei e já consegui dar um grande retorno ao meu povo, levando a outras terras para que eles possam fazer igual ou melhorar”, disse o paulistano, que ali já deu uma pequena pista de seu sonho maior: nacionalizar o projeto.

Segundo ele, o portal foi bem visto também por professores não indígenas: “Os docentes de jornalismo da UFSC ficaram surpresos e adoraram, passaram para muitas pessoas”. E não demorou muito para que começasse a chegar em outros estados. “Foi apresentado em Brasília, São Paulo, Florianópolis e Chapecó”, lista o estudante.

E dentro das comunidades, o retorno também foi gratificante. “Todos os povos gostaram muito da ideia e vieram me procurar para ver como faziam para ter um igual. Agora, estamos reunindo documentos e enviando para todos interessados, para que assim eles possam fazer o mesmo. É uma espécie de assessoria para que eles ganhem os editais de suas regiões e consigam reproduzir”, comentou.

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Com um grande “filho” em mãos, Jucelino quer aumentar seus horizontes. Com a visibilidade conquistada pelo Portal de Saberes, foi contratado como filmmaker da produtora Filmes que Voam, do diretor Chico Faganello, criador da obra “Oração do Amor Selvagem”. Ele viaja a América Latina documentando o que sempre quis: histórias indígenas na visão de suas próprias aldeias.

Cada vez que seu site é apresentado, mais irmãos se fascinam pela ideia de ter um próprio e, quem sabe, surgir aí uma network histórica. “Que cada um tenha seu próprio portal. Isso seria fantástico - ter uma rede. Esse é meu maior sonho”.

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