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Atleta argelina conta como desafiou islâmicos para competir de shorts

Hassiba Boulmerka, vencedora do 1º ouro olímpico da Argélia, em 1992, chegou a ser chamada de 'traidora' por radicais.

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Por Chloe Arnold

Há 20 anos, a atleta argelina Hassiba Boulmerka venceu os 1.500 m das Olimpíadas de Barcelona, uma conquista que não apenas deu a seu país sua primeira medalha de ouro olímpica, como também representou um avanço nos direitos femininos na Argélia. Hassiba foi entrevistada pelo programa Sporting Witness, do Serviço Mundial da BBC, em que relembrou sua trajetória olímpica e como esta quase lhe custou a vida. Nas estantes do escritório de Hassiba, perto da capital Argel, ela atualmente guarda dezenas de troféus esportivos, ao lado de fotografias suas com lendas do esporte e da política, como o corredor etíope Haile Gebrselassie e o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela. Com a medalha em Barcelona e o ouro no Mundial de Atletismo de 1991, Hassiba é hoje considerada a maior atleta da Argélia. Mas, na época em que ela competia, o país norte-africano assistia ao avanço de radicais islâmicos que opinavam que as pistas de corrida não eram lugar para mulheres, muito menos mulheres correndo em shorts. Uma eleição conturbada, em 1992, foi um dos primeiros passos para que o país mergulhasse em uma guerra civil que faria mais de 250 mil mortos. Hassiba chegou a receber ameaças de morte enquanto se preparava para as Olimpíadas de Barcelona, de forma que se tornou perigoso demais treinar em seu próprio país. "Naquele ano (1992), não participei de uma corrida sequer (na Argélia)", recorda Hassiba. "Era arriscado demais. Eu poderia ser morta a qualquer momento." Coleção de medalhas A história da atleta começa em Constantina, cidade ao leste da Argélia. A quarta de sete filhos, Hassiba começou a correr para valer em 1978, aos dez anos, e logo passou a colecionar medalhas em nível regional, nacional e internacional. Chamada de "a gazela de Constantina", ela saltou à fama em 1991, com a vitória nos 1.500 m do Mundial de Atletismo de Tóquio. "Quando voltei de Tóquio a Argel (junto ao também atleta Noureddine Morceli), fomos recebidos por milhares de simpatizantes", diz. No entanto, à medida que forças do governo começaram a enfrentar militantes islâmicos, Hassiba se tornou um alvo. "Em uma sexta-feira, durante as preces em uma mesquita local, o imã disse que eu não era muçulmana, porque eu corria usando shorts, mostrando meus braços e minhas pernas. Ele disse que eu era uma anti-islâmica." A isso se seguiram ameaças de morte a ela e sua família, além de muros grafitados acusando-a de traição. Ela decidiu se mudar para Berlim para continuar treinando e só chegou a Barcelona na véspera de sua disputa nos Jogos Olímpicos. Foi escoltada ao estádio por policiais armados. E acabou ganhando a primeira medalha de ouro da Argélia em uma Olimpíada. "Ao cruzar a linha de chegada (dos 1.500 m), dei um golpe de punho no ar", ela relembra. "Foi um símbolo de vitória e rebeldia. Foi como dizer: 'Consegui! Venci! Se vocês me matarem, será tarde demais. Eu fiz história!'" À beira da guerra A volta para casa, desta vez, ela não foi recebida por milhares de fãs, como no ano anterior. A Argélia estava à beira da guerra. E o pai de Hassiba havia sofrido um derrame e estava em coma. "Meu pai se preocupava muito comigo - era algo estressante para ele", diz. Apesar dos perigos, Hassiba continuou treinando. Obteve medalhas de bronze e ouro nos Mundiais de Atletismo de 1993 e 1995. Mas nunca repetiu o feito olímpico. Chegou a se mudar temporariamente para Cuba, novamente para fugir de ameaças de morte, e acabou voltando para Argélia. "Nunca pensei em me mudar (do país) para sempre", diz. "A Argélia é a minha vida, minhas raízes, minha família e amigos. Jamais poderia abandonar tudo isso." Ela acabou abandonando apenas a corrida e hoje é uma empresária de sucesso. Sobrou pouco da "gazela de Constantina". "Gosto de comer bem", brinca a ex-atleta, que também passa grande parte de seu tempo com seu pai, que lentamente se recuperou do derrame. Mas as conquistas esportivas de Hassiba nunca serão esquecidas na Argélia. Para a ex-atleta, sua vitória em Barcelona não foi só a primeira medalha de ouro do país. "Foi um triunfo para mulheres de todo o mundo que tentam se levantar contra seus inimigos", diz. "Foi isso o que realmente me deixou orgulhosa." BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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