Bandido agora prefere dar golpe ao roubo de rua: por que isso é uma dor de cabeça para as polícias?

Facilidade de transferências bancárias via Pix contribui para alta de estelionatos no País; Ministério da Justiça diz que que trabalha para aumentar a capacidade de investigação e Banco Central dá dicas

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Foto do author Ítalo Lo Re

A queda de roubos e a alta de estelionatos, reveladas pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública nesta quinta-feira, 18, consolidam uma tendência de migração de crimes de rua, como assaltos a mão armada, para golpes, sobretudo virtuais. Impulsionados pela facilidade de transferências bancárias via Pix, aplicativos e jogos online, estes crimes oferecem menos risco aos bandidos e são desafio extra para a polícia.

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Nesse cenário, especialistas apontam que não adianta reforçar o policiamento ostensivo, mas, sim, integrar mais esforços na investigação e no aperfeiçoamento da tecnologia. Além de focar em medidas educativas para evitar que mais pessoas se tornem vítimas de golpes.

“Há uma mudança muito sensível de crimes de rua, de oportunidade, como furtos e roubos principalmente, que tem a ver com a queda de roubos em quase todas as modalidades”, afirma ao Estadão o pesquisador Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Estelionatos online estão ligados ao aumento de roubo e ao furto de celulares no País. Foto: Nilton Fukuda/Estadão - 05/10/2017

Dados do anuário apontam que a taxa de roubos, que têm os celulares como principais alvos, caiu 10,9%, embora esse tipo de crime se mantenha em patamar elevado no País: foram 870.320 ocorrências registradas em 2023, o equivalente a 99 notificações por hora.

Em contrapartida, 1.965.353 casos de estelionato foram registrados no ano passado, o que representa uma taxa de 967,8 ocorrências para cada 100 mil habitantes. Trata-se de uma alta de 8,2% ante o ano anterior, em modalidade que vem crescendo continuamente ao longo dos últimos anos. Hoje, os golpes são considerados os “crimes da moda”.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública diz que que trabalha para aumentar a capacidade de investigação e Banco Central dá dicas (leia mais abaixo).

Quase dois milhões de casos de estelionato foram registrados no ano passado, o que representa uma taxa de 967,8 ocorrências para cada 100 mil habitantes Foto: Gif/Arte Estadão

Segundo Lima, essa é uma tendência observada não só no Brasil, mas no restante do mundo. “Com o mundo virtual, diminuiu a quantidade de dinheiro em circulação, em papel moeda. Portanto, diminuíram a quantidade de caixas eletrônicos. Hoje você quase não tira dinheiro”, exemplifica o sociólogo. A pandemia de covid-19 acelerou esse processo.

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“O que antes era um ‘negócio’ (para o crime) – estourar um caixa eletrônico – hoje se mostra uma coisa que vai te render menos dinheiro e é mais arriscado, porque um roubo tem uma pena mais agravada do, que por exemplo, um golpe, além de ter mais risco de entrar em confronto com a Polícia Militar”, acrescenta.

Em geral, a pena de reclusão para crimes de roubo vai de quatro a dez anos de prisão, enquanto, em casos de estelionato, se estende de um a quatro anos. Mas esse não é o único motivo que atrai criminosos para essa migração: a facilidade de enganar vítimas e a possibilidade de multiplicar os lucros em pouco tempo também entram nessa conta.

“No mundo, não só no Brasil, as pessoas têm um baixo letramento digital e não aplicam medidas de segurança tal como aplicam nas suas casas, como câmeras ou cachorros”, afirma Lima. A exposição a golpes, em meio a isso, acaba sendo ainda maior, o que aumenta a possibilidade de lucro dos bandidos.

Recentemente, repercutiu o caso de uma idosa aposentada de 74 anos de Caraguatatuba, litoral de São Paulo, que entrou na Justiça com uma ação de reparação de danos materiais e morais contra 12 pessoas que teriam, segundo ela, praticado um golpe de estelionato ao se passar pelo ator e ex-governador da Califórnia, nos Estados Unidos, Arnold Schwarzenegger.

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A defensora da vítima contou ao Estadão que a idosa era fã de Schwarzenegger e teria assistido a todos os filmes do ator. As conversas, segundo ela, se iniciaram em 2020 e as transferências bancárias se arrastaram por dois anos, até 2022, o que teria acarretado em um prejuízo de cerca de R$238 mil, segundo a Justiça.

Polícias precisam se ‘reinventar’ a partir de novas dinâmicas

Em meio à alta de golpes, Lima cobra mais priorização de medidas para proteger a população e desmantelar os esquemas – em parte dos casos, os pontos de receptação de celulares roubados, que muitas vezes permitem a aplicação dos golpes, são até conhecidos das polícias.

Em São Paulo, por exemplo, a Rua dos Guaianases, na região de Santa Ifigênia, no centro, se tornou um ponto conhecido por isso. Muitas vítimas apontam que os celulares roubados foram levados para lá, mas as polícias argumentam que só podem acessar os imóveis com mandados.

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As autorizações até são concedidas quando há apurações mais robustas por parte da polícia, mas a avaliação de especialistas é que as investigações devem ser amplificadas, de forma a desencorajar a atuação de quadrilhas focadas na aplicação de golpes.

Como já mostrou o Estadão, em algumas modalidades de estelionato, há inclusive centrais telefônicas que usam música de call center para tentar ludibriar as vítimas, em esquemas bastante elaborados. Um fator limitador para a polícia enfrentar esses crimes é que as vítimas muitas vezes estão em outros Estados.

“O próximo passo da segurança pública tem a ver com a melhoria da investigação criminal para esclarecimento de crimes. Portanto, o investimento nas polícias civis, que, de certa forma, precisariam se reinventar a partir dessa nova dinâmica”, afirma Lima.

O pesquisador reforça que, para isso, é necessário combater não só os golpes, mas tentar elevar as taxas de recuperação de celulares roubados ou furtados, já que são eles que podem permitir a aplicação de vários golpes bancários e a invasão de redes sociais.

No Piauí, está um bom exemplo do que pode ser feito inclusive por outros órgãos estaduais para tentar reduzir os crimes. “Eles têm feito um trabalho de fiscalizar nota fiscal. As secretarias da Fazenda estão olhando se a nota fiscal de galerias que vendem peças de celulares é falsificada ou não, o que ajuda a combater (criminosos)”, afirma Lima.

O Celular Seguro, iniciativa do governo federal para facilitar o bloqueio de aparelhos, também é uma iniciativa avaliada como positiva. Mas os esforços, defende o sociólogo, não se restringem somente ao Estado: a alta dos estelionatos exige pensar além.

Em artigo publicado junto à divulgação do anuário, Lima destacou, junto aos pesquisadores Samira Bueno e Rafael Alcadipani, também membros do Fórum, que estudo realizado no ano passado pela consultoria PWC indicou que apenas 3% das empresas e organizações consultadas pela equipe do projeto relataram iniciativas robustas associadas a práticas de cibersegurança, como análise preditiva de fraudes e reforço na segurança dos dados.

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“Ou seja, mesmo com todos os avanços tecnológicos, o investimento em segurança digital ainda é baixo e abre brechas que ajudariam a compreender os números de golpes virtuais”, apontam os pesquisadores no artigo. “O crime tem explorado as novas fronteiras sociais e econômicas de modo cada vez mais rentável e inovador.”

Em nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que “trabalha pela articulação da rede de DHPPs (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa), para aumentar a capacidade de investigação de homicídios pelas unidades especializadas, com vistas ao aumento da taxa de esclarecimento dos crimes em âmbito nacional.”

Ainda de acordo com a pasta, a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) tem reforçado parcerias com os Estados e o Distrito Federal em ações de inteligência e atuado de forma integrada com as polícias Civil, Militar, Federal, Rodoviária Federal e Científica, e em conjunto com os Ministérios Públicos estaduais e Federal no combate ao crime organizado..

Já o Banco Central listou dicas de como a população pode se proteger de golpes bancários:

  • Não transferir dinheiro a pedido de conhecidos enviado por aplicativos de mensagens (WhatsApp ou Telegram, por exemplo), principalmente para a conta de outra pessoa que não é conhecida. É indicado telefonar antes ou encontrar a pessoa, confirmando se ela realmente fez o pedido;
  • Não aceitar ajuda de estranhos para pagar contas, sacar dinheiro ou fazer outra operação em caixa eletrônico. Pedir ajuda somente a funcionários do banco, que devem estar identificados com crachá e uniforme com o nome do banco;
  • Desconfiar de promessas de herança, doação ou prêmios em moeda estrangeira (dólar, por exemplo) e não transferir dinheiro para o exterior para receber um valor prometido;
  • Não fornecer o cartão ou senha a outras pessoas, mesmo que conhecidas;
  • Se ainda tiver dúvidas, consultar os canais oficiais do banco.
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