Quando ocorre um desastre ambiental de grande proporção, como no Rio Grande do Sul, é comum voltar os olhos para práticas inspiradoras da Holanda, do Japão e de outros países desenvolvidos. Mas não só. A tragédia gaúcha voltou a chamar a atenção para uma iniciativa que virou referência nacional: o AlertaBlu, sistema de monitoramento, previsão e alerta de riscos de enchentes, deslizamentos e enxurradas de Blumenau, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina.
Além de um sistema de gerenciamento de risco para o poder público, o AlertaBlu é uma ferramenta de comunicação com a população por meio de site e aplicativo. Nessas plataformas, os moradores são informados do nível do rio, da situação das barragens locais e das projeções meteorológicas para os próximos dias, além de visualizar os abrigos mais próximos, dentre outras funcionalidades.
Fundado em 1850, o município nasceu às margens do Rio Itajaí-Açu e em uma região de vales, características propícias (dentre outras) para as cerca de 100 inundações registradas desde então. Segundo a Defesa Civil, 70% do território tem riscos hidrológico ou geológico, incluindo o centro.
Com esse histórico, duas sequências de maior magnitude mudaram a forma como Blumenau se preparava para desastres: as de 1983 e 1984 e de 2008 e 2011. Os dois períodos estão ligados ao desenvolvimento das medidas de prevenção que projetaram a cidade — o primeiro pela sociedade civil e o segundo, pelo poder público.
Na prática, a experiência iniciada há cerca de 40 anos trouxe parte da expertise do sistema hoje consolidado. Tem ganhado destaque ainda mais no contexto de mudanças climáticas, em que extremos tendem a ser mais frequentes e intensos.
Ao Estadão, uma das principais referências do Banco Mundial na área citou a cidade como exemplo. “O AlertaBlu é um case mundial, de ‘best practices’ global”, disse Jack Campbell, especialista sênior em Gestão de Risco de Desastres do Banco Mundial na América Latina e no Caribe. “Os moradores têm acesso ao aplicativo e interpretam aquela informação no âmbito muito local”, acrescentou.
A experiência de Blumenau está no repositório de boas práticas do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional — assim como a prefeitura já foi procurada por outras que estudam replicar a experiência, como Maceió, no ano passado. Além disso, com a tragédia gaúcha, Blumenau “adotou” dois dos municípios mais devastados do Vale do Taquari (Lajeado e Estrela) para dar suporte técnico.
Segundo a Defesa Civil municipal, o AlertaBlu está hoje instalado em 49,7 mil celulares, mas há picos de novos downloads em momentos de previsão ou ocorrência de grandes chuvas. Blumenau é o terceiro município mais populoso de Santa Catarina, com 361,2 mil habitantes, conforme o IBGE.
Para especialistas ouvidos pelo Estadão, o sistema tem colaborado para reduzir impactos das inundações e se aproximar da população, com potencial para ser replicado. Eles destacam, porém, que não pode ser visto como única medida, mas como parte de um planejamento de gestão de risco, em conjunto com outras ações, de obras de contenção e drenagem a restrições de ocupações de áreas de risco e educação ambiental, dentre outras.
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Qual é a história do AlertaBlu?
Após a grande enchente de 1983, a Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb) criou o “Projeto Crise” e, na sequência, começou a mapear áreas de risco hidrológico e a instalar estações para previsão e monitoramento de cheias e chuva. A iniciativa resultou na criação do Centro de Operações do Sistema de Alerta da Bacia Hidrográfica do Rio Itajaí-Açu (Ceops), cuja atuação se estendeu até 2022, quando teve o histórico de dados e atribuições incorporados ao AlertaBlu.
Já o AlertaBlu começou a ser implementado em 2013. Na mesma época, Blumenau foi escolhida como uma das três cidades-piloto do Projeto de Fortalecimento da Estratégia Nacional de Gestão Integrada de Riscos em Desastres Naturais (Gides), com treinamentos fruto de uma cooperação entre os governos brasileiro e japonês.
No começo de 2014, o AlertaBlu passou a operar, com o app lançado no ano seguinte. À época, informou que o custo de implementação dos equipamentos seria de R$ 7,1 milhões, enquanto o aplicativo foi criado pela própria equipe de servidores.
Desde então, o sistema passou por atualizações, mudanças no layout e expansão de funcionalidades. Além das estações, abrange o processamento de dados e um modelo de previsão do tempo que considera as características da cidade. A equipe de monitoramento envolve meteorologistas, técnico em meteorologia, agente administrativo e analista de informática.
“O sistema consegue nos antecipar a quantidade de chuva e a localização, para que a gente possa, então, adotar os primeiros protocolos para aquela região”, explica o secretário municipal de Defesa Civil, Carlos Olimpio Menestrina. Já o app foi pensado como forma de se aproximar dos moradores. “Não adianta muitas vezes ter a informação e não conseguir disseminar à população de forma clara.”
Segundo ele, o aplicativo reduziu o volume de ligações recebidas durante enchentes, embora parte da população ainda prefira o telefonema. “Todas informações estão na palma da mão, o que facilita e norteia a população para que tome medidas para esse enfrentamento, evitando perda de vidas e de patrimônio”, diz. A próxima atualização prevista é um mapa que sugere rotas de evacuação, em parceria com um app de trânsito.
O secretário defende que a gestão de riscos precisa de aprimoramentos constantes, pois as necessidades mudam. Cita como exemplo a tragédia de 2008, em que foram registrados cerca de 3 mil pontos de deslizamento na cidade. O Estado teve 135 mortes — principalmente no Vale do Itajaí.
Até então, com o risco de inundação, grande parte da expansão da cidade havia ocorrido em direção oposta ao rio, aproximando-se dos morros. “O pessoal tinha se acomodado em avaliar o nível do rio e esqueceu das encostas”, analisa.
Criada em 2013, a secretaria é dividida em três diretorias: gestão de riscos e desastres, geologia e meteorologia. São 44 servidores e um orçamento de cerca de R$ 3 milhões, segundo Menestrina.
A pasta também realiza os programas de Defesa Civil na Escola (4ª e 5ª série do ensino fundamental), há cerca de 10 anos, e Agente Mirim, dentre outras ações. As atividades são quinzenais em instituições públicas e privadas, com agentes e uma mascote canina. “Precisamos que essas crianças sejam adultos conscientes e resilientes, sabendo o que fazer antes e depois”, aponta o secretário.
Professor de Arquitetura e Urbanismo da Furb, Leandro Ludwig percebe que o AlertaBlu se tornou fonte confiável para informar a população, mas compete com redes sociais e afins, em que notícias antigas, rumores e fake news se espalham em eventos mais extremos. “É importante porque, quando há um desastre, a população é sobrecarregada com muita informação e tem dificuldade de identificar qual é importante e qual não é”, analisa.
O urbanista defende que momentos de desastre podem ser um ponto de ruptura para a adoção de medidas de preservação e mitigação de riscos. “Os desastres em Blumenau foram se complexificando. No início, era o problema das enchentes. Depois, a ocupação dos morros. Agora, tem as enxurradas. Se está sempre correndo atrás”, compara.
No caso de municípios médios e grandes, a alternativa seria a adaptação e mitigação. “Grandes cidades consolidadas em local de risco não têm alternativa: a única saída é conviver com o risco de forma inteligente”, aponta. Isto não significa, contudo, permitir expansão para novas áreas de risco, mas adotar medidas para reduzi-las onde há grande urbanização.
Como funciona o AlertaBlu?
Na tela inicial, o app mostra o nível do rio (e se teve queda ou elevação), a temperatura, a previsão geral do tempo e as condições de risco de chuva e normalidade. Também envia alertas.
Uma escala de cores informa o risco: verde (normal), amarelo (observação), laranja (atenção), vermelho (alerta) e roxo (alerta máximo). Essa classificação é separada entre nível do rio, condições de chuva e risco de deslizamento. Além disso, são diferenciadas para cada uma das cinco regiões da cidade.
Há ainda outras funcionalidades, como:
- Nível do rio e variação nas últimas 24h;
- Condições de chuva (separadas para cada uma das quatro regiões);
- Risco de deslizamento;
- Previsão do tempo por turno e para os próximos dias;
- Dados separados por estação meteorológica (agora, dia anterior, mês anterior, acumulados mensais e maiores chuvas);
- Mapas de inundação, dos abrigos e área com potencial risco;
- Situação das barragens;
- Cota de inundação de cada rua.
A rede de monitoramento meteorológico de Blumenau é formada por 16 estações pluviométricas (volume de chuva), uma meteorológica (temperatura, umidade do ar, chuva e direção e intensidade do vento) e outra hidrometeorológica (nível do rio e chuva), alimentadas por painéis solares e baterias. Segundo a Defesa Civil, a leitura de dados ocorre a cada 15 minutos.
Nas páginas oficiais de download, o app é bem avaliado para Android, com nota 4,5 (de 5), mas está com só 1,8 para iOS. Entre as avaliações de ambas as opções, estão relatos de erros e bugs — “mais uma vez, apresenta falhas”, diz comentário de fevereiro —, assim como elogios — “quando deu a enchente em 2023, me ajudou bastante”, aponta outro de maio. Segundo a Defesa Civil, falhas são continuamente avaliadas e os problemas para iPhones foram resolvidos.
Em pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com 301 participantes, em 2021, 89,4% avaliaram que o AlertaBlu“satisfaz as necessidades”. No grupo, constaram comentários de que ajudaria a evitar maior “ansiedade” em momentos de possível desastre.
Por que Blumenau é tão propensa a enchentes? Hidrólogo responde
Um dos principais especialistas na hidrologia do Vale do Itajaí, Ademar Cordero explica que Blumenau está em uma região propícia a enchentes. Um dos motivos é o formato arredondado da Bacia do Rio Itajaí-Açu, assim como o fato da cidade receber as águas de quatro importantes rios.
“Bacias como a do Vale do Rio São Francisco são mais estreitas e alongadas. Aí não tem tanto problema de enchente. A chuva vai chegando e a vazão vai saindo”, descreve o professor da Furb.
O município também tem solo mais rochoso, com menor potencial de fácil infiltração da água. Além disso, está em uma serra ao sul do País, recebendo influência da umidade da Amazônia após ser rebatida pela Cordilheira dos Andes. “Como agora a umidade ficou no Rio Grande do Sul. Tem épocas que fica aqui (’presa’ no vale).”
Integrante da equipe da Furb que liderou o monitoramento do rio, o hidrólogo percebe que a região vive novo momento em gestão de crise. “Deixamos um legado quando a Defesa Civil não estava organizada e não tinha estrutura.”
Também destaca que a tecnologia atual facilita o trabalho em comparação há 40 anos. “Blumenau se tornou um grande laboratório e está funcionando”, aponta.
Além dos casos de Blumenau, ações do governo do Estado e de prefeituras catarinenses também foram catalogadas como de boas práticas de proteção e defesa civil do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional.
Entre elas, estão o curso à distância “Psicologia das emergências e desastres aplicada às ações de Defesa Civil” (Estado) — com 2 mil participantes nas duas primeiras edições, como bombeiros, policiais, servidores de assistência social etc —, o programa “Agente voluntário da Defesa Civil” (Criciúma) e o projeto “Rota segura para dias de inundação” (Joinville) — de placas de trânsito com rotas alternativas.
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