Boate Kiss: ‘Não tem receita para viver o luto’, diz irmã de jovem que salvou 14 em Santa Maria

Vinicius, que recebeu homenagens pelo ato heroico, não sobreviveu à tragédia com 242 vítimas há 10 anos; Ezequiel também ajudou outras pessoas na casa noturna, mas conseguiu escapar do incêndio

PUBLICIDADE

Por Laura Gross
Atualização:

Faz dez anos nesta sexta-feira, 27, que Jessica Montardo Rosado e o irmão Vinicius planejaram comemorar o aniversário de um amigo. Na verdade, a festa já havia ocorrido à tarde, mas como eram jovens, quiseram estender em uma balada. A duas quadras e meia de distância e apesar da fila gigante, a escolhida foi a Boate Kiss, local da tragédia que deixou 242 mortos em Santa Maria (RS). Poderia ter sido pior se Vinicius, estudante de Educação Física e jogador de rugby, não tivesse conseguido salvar pelo menos 14 pessoas. Ele mesmo, porém, não escapou.

Jessica teve de aprender a lidar com a dor da perda do irmão. Recorreu a yoga, acunpuntura, escreveu sobre traumas nas redes sociais e também aos conselhos de outros parentes de vítimas, que se juntaram nos primeiros anos após o incêndio. “Não tem receita para viver o luto. Cada um vive a dor de uma forma. O que sempre digo para as pessoas é para que se permitam, pois sempre me permiti”, diz ela, hoje com 34 anos.

Nesta sexta-feira, completam-se 10 anos da tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria.  Foto: SILVIO AVILA / AFP

PUBLICIDADE

(No dia da tragédia) A fila era gigantesca, mas não acontecia só na Kiss. Eu não tinha ideia de que as filas que faziam voltas na quadra, poderiam significar algo. Tenho certeza que ninguém imaginava isso antes da tragédia acontecer”, afirma. Do grupo de 20 pessoas que foram à casa noturna para comemorar o aniversário, 11 morreram.

“Eu vi a hora que o Marcelo (de Jesus Santos, da banda Gurizada Fandangueira) colocou a luva, pegou o artefato pirotécnico e na hora do refrão, ergueu as mãos e uma faísca pegou no teto”, afirma ela, que até hoje não consegue ouvir a música Amor de Chocolate, do funkeiro Naldo, que tocava na hora em que o fogo começou. Ela relata ter saído “empurrada” pela multidão, que se assustou com a fumaça. Já o irmão ficou dentro do espaço, e depois começou a ajudar outras pessoas na boate.

Publicidade

Logo que saiu da Kiss, Jessica entrou em contato com o pai. Eles e amigos procuraram por Vinicius a madrugada inteira e só no início da manhã descobriram que ele, de apenas 26 anos, havia morrido. “Passei muito mal durante todo o velório. Cuspia e tossia preto. Mas também foi durante aquele momento que soubemos, por capas de jornais, que o Vinícius tinha feito história”, afirma ela, sobre a repercussão internacional do caso. “A gente está aqui pra relatar, mas ele que é o herói e a pessoa que fez por merecer todas as homenagens que recebeu até hoje.”

Jéssica perdeu o irmão, Vinícius, na tragédia da boate Kiss. Ele ajudou a salvar 14 pessoas, mas não resistiu. Foto: Arquivo pessoal

Santa Maria também fez questão de preservar a memória do rapaz. O ginásio anexo “B” do Centro Desportivo Municipal Miguel Sevi Viero recebeu o nome do jovem e ele teve seu nome dado ao campeonato da segunda divisão do Rugby gaúcho.

Após a perda do irmão, ela diz ter cursado Direito para entender os desdobramentos judiciais do caso. Jessica terminou o curso, mas nunca trabalhou na área e não fala do assunto. Em agosto de 2022, ninguém está preso: a Justiça anulou o júri que condenou quatro pela tragédia (dois sócios da boate, o músico que acendeu o instrumento pirotécnico que deu origem às chamas e o empresário da banda, que comprou o artefato). Recursos tramitam no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF).

‘Não sei de onde tirei forças, mas coloquei ele nos braços para que não morresse’

“Não sei de onde tirei forças, mas coloquei ele nos braços e tirei lá de dentro para que não morresse”. Esse relato é de Ezequiel Corte Real, 33 anos, multicampeão de fisiculturismo, que salvou pelo menos 20 pessoas no dia da tragédia. Também estudante de Educação Física e na época com 23 anos, ele diz que muitas imagens do dia se apagaram - ele teve de buscar ajuda psicológica após o trauma.

Publicidade

O fato de estar na asa noturna naquele dia se deu por acaso. “Estava com alguns amigos no centro dando uma volta, mas não tínhamos intenção de ir em festa”, conta. “Um homem passou de carro e disse que estava vendendo os ingressos dele porque tinha desistido de entrar na boate. Decidimos entrar.”

Lá dentro, eles ficaram em frente ao palco para curtir o show. Quando a fumaça começou ele acreditou que haveria uma equipe preparada para lidar com isso, mas não foi o que ocorreu. Entre o caixa e a chapelaria do estabelecimento, ele viu duas moças caídas no chão. “Elas estavam sendo pisoteadas por outras pessoas. Só pensei em colocar uma em cada braço e tirar ali de dentro. Conforme eu ia tirando, elas iam desmaiando logo que largava na calçada.”

Por sua força e tamanho, Ezequiel conseguia retornar para dentro da casa noturna e erguer pessoas que já estavam desmaiando por conta da fumaça tóxica das espumas usadas para isolamento acústico do local. O universitário ainda salvou mais pessoas, até que uma policial o interrompeu, mostrando que tudo poderia desabar. Foi aí que ele percebeu a quantidade de corpos sob lonas no estacionamento do supermercado próximo à boate. Nas semanas seguintes, ele recebeu a gratidão e a solidariedade dos parentes de quem ele ajudou - mesmo os que não resistiram depois.

“Nesses 10 anos depois, consigo ver que existe um ponto na minha vida em que ressurgi. Além de ter uma nova oportunidade, consigo sentir que a vida vai muito além do que a gente vive aqui”, diz o fisiculturista. “Dou mais valor à família, minha mãe, minha avó”, afirma.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.