Caro leitor,
Companheiro do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e um dos principais articuladores do Grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), uma das trincheiras do anticomunismo no País desde os 1990. Essas são as credenciais do general Luiz Eduardo Rocha Paiva, insuspeitas, portanto, entre os guerreiros ideológicos das Forças Armadas.
Foram elas que levaram o governo a nomear o militar, como provocação ou ‘despetização’, para a Comissão de Anistia, aquela que analisa a concessão de indenização às vítimas de perseguição política ou de crimes da ditadura. Jair Bolsonaro sabia, portanto, o que estava fazendo. Rocha Paiva sempre disse o que pensa sobre a esquerda e sobre os políticos em geral.
O general deve imaginar a imensa frustração que acompanhava a carreira parlamentar de seu candidato e hoje presidente da República. Quase nenhum projeto aprovado em 28 anos de Casa. É a frustração de um político que se vê como um Sísifo, ou que, se conhecesse as letras antigas, poderia repetir em um dos salões do Planalto o verso de Lucrécio: “Imperium quod inane est, nec datur umquam”, esse império que é ilusório e não é jamais concedido.
Imperium no verso indica não só o ato e o efeito de comandar, mas também a posição de força a partir da qual se comanda, isto é, conjuntamente, os requisitos e as premissas necessários para poder exercitar o comando, como aliás ensina o filósofo Luciano Canfora em La natura del potere. Lucrécio sustentava que a conquista do poder político era mera aparência, substancialmente, nula, daí a imagem de Sísifo que “se debate para obter do povo os fasces e os machados temíveis”.
Pois foi um Bolsonaro frustrado diante da tarefa de obter o favor de todos que Rocha Paiva encontrou quando recriminou a declaração do presidente sobre os “governadores dos paraíbas”. O general considerou a fala “antipatriótica” e “incoerente”, uma expressão de desprezo por uma parte do povo brasileiro saída da boca de um político que governa todo o povo e deve, como Sísifo, lutar contra a frustração que o exercício do poder lhe causa.
Bolsonaro acusou o golpe de ver um general com as credenciais de Rocha Paiva o recriminando. Satisfeito em constatar que se tratava “apenas de um general” – mal sabe o presidente o que outros generais pensam – achou que podia se livrar da pedra lançada em sua vidraça criando uma mentira: Rocha Paiva é melancia, verde por fora e vermelho por dentro.
De colega de Ustra a comunista: a transformação do general na boca de Bolsonaro soou aos militares apenas como "uma impostura". Ela desvela "a mentira do presidente" ao negar o que disse: a fala sobre os nordestinos. Viram-no agir "como político e não como militar".
Como se sabe, toda a civilização antiga e mesmo as suas hierarquias se ergueram em torno da posse e do uso da palavra. “Platão trata disso em vários de seus Diálogos. Dizer as ‘coisas oportunas’ (léghein tà déonta) é, por si só, a atividade política, considerada antes de tudo como ‘palavra’.” Eis outra lição que Bolsonaro poderia aprender com Canfora. O descaso com as palavras trai Bolsonaro.
Horas depois de apodar Rocha Paiva de melancia, outro general – Paulo Chagas (aliás, amigo de Rocha Paiva, também próximo do Ternuma e do general Eduardo Villas Bôas) – foi ao Twitter revelar seu descontentamento com o governo. E, nesse caso, o que o moveu foi a mesma preocupação que fez Tucídides retratar Péricles como incorruptível. Ele disse: “É mais fácil praticar o vício do que a virtude. Se adotarmos a prática de justificar nossos erros com os erros dos outros, em pouco tempo acharemos naturais as práticas corruptas do PT, desde que restritas às doses cabiveis na nossa consciência...”
Candidato derrotado ao governo do Distrito Federal, Chagas respondeu a Bolsonaro colocando o dedo na ferida da investigação sobre peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa que envolve o filho do presidente, o senador Flavio Bolsonaro (PSL-RJ), paralisada por decisão do ministro Dias Toffoli, do STF.
Pode-se argumentar. É só mais um general querendo defender um amigo. Se Bolsonaro leu o Estado no domingo viu que generais da ativa estão se manifestando no Twitter sobre política, e o Comando do Exército tenta coibir a prática. Viu que a maioria lhe é simpática, mas mesmo entre eles a corrupção, essa palavra maldita, capaz de tornar qualquer político um pária, já foi pronunciada. E o foi por quem comanda, por quem tem império no sentido militar da palavra.
O general Carlos Penteado, comandante da 5.ª Divisão do Exército, escreveu em seu perfil no Twitter, quando Flávio Bolsonaro afirmou que quem devia explicações sobre as movimentações bancárias suspeitas era seu ex-assessor Fabrício Queiroz: “Diz axioma nas Forças Armadas que o comandante é o responsável por tudo o que acontece ou deixa de acontecer. Ventos novos exigem posturas novas.”
Afinal, quantos 'melancias' Bolsonaro vai arrumar nas Forças Armadas? Chamar de melancia um militar não é coisa nova. O major-brigadeiro Rui Moreira Lima, herói da 2.ª Guerra Mundial com 93 missões de combate e condecorado com a Cruz de Combate (Brasil), com a Croix de Guerre avec Palme (França) e com a Distinguished Flying Cross (EUA), foi cassado em 1964 porque era um “gregório”, como eram chamados os aviadores identificados com o trabalhismo, versão edulcorada da expressão melancia.
Nada de novo, pois, na atitude de Bolsonaro de atacar quem o critica. Nem novidade é haver política nos quartéis, em vez de apenas existir uma política dos quartéis. Qual então a novidade de Bolsonaro para os militares? A novidade que Bolsonaro, por enquanto, traz é aquela de um ministro terrivelmente evangélico no STF, do tempo gasto com as bananas do Vale do Ribeira e com as tilápias de seu secretário da Pesca? No Brasil novo de Bolsonaro ninguém passa fome e nenhum metro da Amazônia é desmatado. É um Brasil de cabeça para baixo, como o universo invertido de Stranger Things.
E, assim, enquanto Bolsonaro vê melancias no generalato, o seu ministro-chefe da Secretaria de Governo, de quem depende aarticulação política com o Congresso para a aprovação das reformas, o general Luiz Eduardo Ramos, resume sua tarefa em entrevista ao 'Estado': “Quero servir de ponte entre o Executivo e o Legislativo, porque é muito importante. No andar da carruagem, vou arrumar as melancias que estão em cima.”
Trabalho difícil o de Ramos: arrumar as melancias sabendo que as palavras de Bolsonaro vão retirar a qualquer momento uma fruta da base da pilha. Paciência. É assim mesmo. Pois com o presidente a política se transforma na arte de arrumar melancias.
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