Caro leitor,
Mais cruel do que a guerra na trincheira é aquela travada entre os papéis do Orçamento do governo. O que é o impacto dos estilhaços de um obus disparado à aurora pelo inimigo diante da destruição provocada pelos cortes nas verbas discricionárias da Saúde ou da Educação? Como toda guerra, a do Orçamento também tem seus vencedores e vencidos. E na história do País – bem como na do governo de Jair Bolsonaro – nem é preciso grande esforço para saber onde estão os primeiros. O difícil é contar a história dos demais, feita à míngua de recursos.
Reveladora da continuidade dessa trajetória, onde o orçamento estatal serve primeiro aos homens da ocasião e do poder – quase sempre integrantes de corporações e estamentos –, é a reportagem feita por Mateus Vargas, publicada nesta segunda-feira, dia 17, no Estadão. Sob o título Defesa terá mais dinheiro do que a Educação em 2021, ela faz lembrar o desabafo do deputado federal Paulo Dias Martins, em 1935. Eleito como representante classista dos funcionários públicos, Martins era o diretor de Rendas Internas do Ministério da Fazenda, quando teve seu dia de Paulo Guedes.
Diante da insistência dos militares em aprovar o aumento de seus vencimentos – alegavam os generais ganhar menos do que outros funcionários civis –, Martins sugeriu que se buscasse o dinheiro para bancar a despesa extra cobrando-se um novo imposto sobre o consumo de produtos populares, como o tamanco, o sabão e o bacalhau. Era como onerar a cesta básica da época. A grita foi geral. O governo retrocedeu. Apesar das ameaças do general Góes Monteiro, o tamanco salvou a bolsa da viúva. Depois, aprovou-se um abono para civis e militares, mas o presidente Getúlio Vargas vetou o dos civis. "Pobre funcionalismo público... Por que também não lhe deram armas?" Eis o desabafo do deputado.
Oitenta e cinco anos depois, professores e médicos continuam sem armas. É o que explica a intenção do governo de Jair Bolsonaro de reservar no Orçamento de 2021 para as despesas com militares R$ 5,8 bilhões a mais do que o total previsto com a Educação. De acordo com o plano, a Defesa terá um acréscimo de 48,8% em relação a este ano, passando de R$ 73 bilhões para R$ 108,56 bilhões. Enquanto isso, a verba do Ministério da Educação deve cair de R$ 103,1 bilhões para R$ 102,9 bilhões – valores corrigidos pela inflação.
Pode-se tentar afirmar que a verba discricionária tanto de um ministério quanto do outro sofreram cortes. Mas a verdade é que a verba da Defesa cresceu e foi blindada, ou seja, não pode ser contingenciada e isso em um ano em que ninguém sabe qual será o impacto econômico do fim do auxílio emergencial sob a economia. A peça do Orçamento é mais um documento que vai se juntar a outros tantos em nossa história que dão testemunho da opção preferencial pela burocracia, onde gorjeiam aves amigas em ninhos construídos sobre o dinheiro público.
Outro desses documentos é a carta de 14 de novembro de 1935 de Gustavo Capanema, então ministro da Educação (1934-1945), ao então presidente Getúlio Vargas. "Meu caro presidente, trago-lhe, finalmente, o projeto de reorganização do Ministério da Educação." O político mineiro queria dinheiro para realizar o sonho de criar a Universidade Brasil, no Rio. Capanema precisava da verba e explicou onde pretendia encontrá-la. "Por conta dos 101.280:192$900 (101 mil contos de réis), destinados por este orçamento à proteção à maternidade e à infância e à educação, apenas se pedem 49.300:000 000 (49 mil contos de réis). Não quis lançar mão de todas as dotações orçamentárias, em vista da situação financeira em que nos encontramos."
Capanema retirava da proteção à maternidade e à infância, mas mirava a modernização do Brasil. Buscava não apenas a cooptação da intelectualidade, mas um projeto para o País. Afinal, que tipo de projeto para a Nação existe por trás de tal orçamento diante dos desafios postos pela Saúde e pela Educação públicas? Entregar vauchers ao povo e cada um que se vire? Essa seria a pergunta fácil, mas ela esconde outra ainda mais importante que está na reportagem do Estadão. Trata-se da informação sobre o comprometimento do Orçamento da Defesa com os gastos com pessoal.
É sabido por todos que a previdência militar no País não tem paralelo nos Estados Unidos ou na Europa. Todos dispõem de regras menos privilegiadas do que as brasileiras – não há, por exemplo, integralidade e paridade para todos na caserna fora do Brasil. A sociedade e o Congresso, que pouco se interessam pelos assuntos militares e pela Defesa Nacional, como notou o general Sérgio Etchegoyen, também não discutem a qualidade dos gastos e as distorções nas carreiras castrenses.
Por que a manutenção da estabilidade para tantos? Por que a existência de escritórios onde coronéis dão ordens para... coronéis. Como as Forças Armadas conseguem "ceder" 6 mil de seus integrantes para ocupar funções civis no governo? Eles não fazem falta? Como formar uma reserva – oficiais e soldados – que possa defender a Pátria em caso de guerra? Qual o modelo de Exército devemos ter? De conscritos ou profissional? Em seu Tratado Político, Spinosa chamava a atenção para os que buscavam "ligar a si o Exército por meio de benevolências, liberalidades e outros procedimentos habituais aos generais que procuram escravizar os outros e estabelecer o seu próprio domínio".
O que é certo é que nenhuma força armada que consome 91% do seu orçamento com pessoal pode investir em armas, em tecnologia ou não terá sua capacidade de defender o País afetada por tal situação. Como comparação, o orçamento da Educação de 2021 mostra que 72% dos recursos da pasta serão usados para cobrir salários, gratificações e pensões de ativos e inativos. Em artigo ao Estadão, o professor Manoel Domingues Neto, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), escreveu: "Para ganhar batalhas, comandantes aprendem desde cedo a dissimular e camuflar intentos. Mas não podem assim proceder com os que lhes pagam o soldo e as armas."
Na quinta-feira, dia 13, Bolsonaro disse em uma de suas transmissões nas redes sociais que sofre pressão para aumentar os recursos destinados às Forças Armadas. Reconheceu que o cobertor era curto. “Alguns chegam: ‘Pô, você é militar e esse ministério aí vai ser tratado dessa maneira?’ Aí tem de explicar. Para aumentar para o Fernando (Azevedo e Silva, ministro da Defesa) tem de tirar de outro lugar. A ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?"
O então deputado Paulo Martins responderia ao presidente não ver nenhum problema, desde que Jair Bolsonaro cumprisse outra de suas promessas: "armar o povo". Bolsonaro acredita que a medida faria dos governantes seres mais responsáveis... E, assim, o medo hobbesiano revelaria o orçamento como o palco moderno da guerra de todos contra todos. Os brioches, no entanto, continuariam em falta.
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