Caro leitor,
na manhã da quarta-feira, dia 2, quando o mestre da fragata Independência executar os toques de apito para o comandante da embarcação, em Beirute, no Líbano, a cerimônia de bordo da Marinha vai marcar o fim de uma era da diplomacia brasileira e de sua Defesa: pela primeira vez em 21 anos o Brasil ficará sem tropa em missões de paz das Nações Unidas.
Desde 2011 o Brasil fazia parte da Unifil, a única força de paz marítima da ONU, responsável pelo patrulhamento das águas territoriais libanesas. A Marinha exercia o comando da missão, que, agora, deve passar para a Alemanha. A Independência foi a última fragata enviada ao Oriente Médio. Ela havia partido, em 8 de março, do Rio, para o Líbano, onde já havia estado em outras duas oportunidades, levando seu helicóptero Super Linx e um grupo de mergulhadores de combate (GruMeC), além de um destacamento de fuzileiros navais. Era o navio capitânia da Unifil quando escapou por pouco da explosão do depósito de nitrato de amônia que devastou a capital libanesa em agosto.
A embarcação, cuja missão era impedir a entrada de armas e materiais ilegais no Líbano, deixará o porto de Bierute no dia 2 e deve chegar ao Brasil em 28 de dezembro. No dia 1.º de janeiro de 2021, o contra-almirante Sergio Renato Berna Salgueirinho passará o comando da força, encerrando assim a participação do País na missão – restarão como capacetes azuis apenas os militares que trabalham como observadores militares em missões individuais, em países como Chipre, Eritreia e Sudão do Sul.
Foi nos anos 1990 que aconteceu a retomada da presença brasileira em forças de paz. Em 1994, duas centenas de paraquedistas brasileiros foram mandados para a Onumoz, a força enviada pela ONU à Moçambique, após o acordo de paz de Roma, entre o governo da Frelimo e a guerrilha da Renamo. Desde 1967, quando se retirara da região de Suez em razão da Guerra dos Seis Dias, o Brasil não participava dessas missões. Então comandante do Contingente Brasileiro em Moçambique (Cobramoz), quando era major, o general Franklimbergue Freitas lembra que a tropa no país africano abriu o caminho na ONU para que a presença do Brasil fosse requisitada em outras oportunidades. "E nós procuramos contribuir com nossa experiência com aqueles que foram para Angola."
A missão seguinte foi justamente em Angola e durou quase três anos, mobilizando 4.485 militares das Forças Armadas e policiais militares. Em 1997, o Brasil ficaria pela última vez sem fazer parte de nenhuma missão de paz. Isso aconteceu por causa da retirada das tropas brasileiras da missão Unavem 3, das Nações Unidas, em Angola, em razão do recomeço da guerra civil entre a guerrilha da Unita e o governo do MPLA. A ausência brasileira duraria pouco mais de dois anos.
O atual período de 21 anos contínuos de missões com tropas se iniciou em 25 de setembro de 1999, quando o então major Fernando do Carmo Fernandes chegou ao Timor Leste, como oficial de ligação do futuro contingente brasileiro com as tropas australianas. A ação na ilha foi autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, antes da formação propriamente de uma força de paz. Ela devia estabilizar o país, depois de os invasores indonésios – a ocupação do Timor Leste durou 25 anos – terem adotado a política de terra arrasada ao deixar o lugar. Dias depois, 51 homens – um pelotão da Polícia do Exército – desembarcaria em Dili.
Depois do Timor, o País mandou tropas para o Haiti e para o Líbano, como capacetes azuis. Ao todo, 38,2 mil militares brasileiros participaram dessas operações, que não se limitaram ao entorno estratégico do País, compreendido pela América Latina e pela África Ocidental. A presença nessas missões era considerado uma forma de projeção do poder nacional em um momento em que o Itamaraty buscava abrir novos espaços para o Brasil nos organismos internacionais, com reivindicações como a reforma do Conselho de Segurança da ONU a fim de nele obter uma cadeira para o País.
"Havia da parte dos diplomatas e dos militares essa consciência de que essas operações eram complemento indispensável à ação de um país como o nosso, que não tem propriamente poder militar – não somos uma potência nuclear ou convencional", afirmou o embaixador Rubens Ricupero. Diplomatas e militares concordam que a ausência de tropa do País nas forças de paz trará consequências para o Brasil e para suas Forças Armadas.
Na área da Defesa, elas podem afetar a sua modernização por meio da aquisição de experiência e doutrina para o emprego de suas tropas – exemplo disso foi a mudança da logística do Exército brasileiro em operações no exterior depois da experiência do Haiti. Mas não só os militares devem ser sofrer com a retirada. É a própria presença do País no mundo e sua relevância internacional que serão diminuídas. "A força no Líbano era a única presença significativa brasileira em uma área estratégica importante. Dentro do grande jogo, a única que tínhamos era essa.", afirmou Ricupero.
O general Adhemar da Costa Machado Filho, um dos comandantes do contingente brasileiro em Angola, escreveu uma monografia sobre o tema, em 1999, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), no qual afirmava que a participação brasileira nas operações de manutenção da paz proporcionava a "oportunidade de projetar a expressão militar do poder nacional no exterior o que, em última análise, representa um acréscimo da influência do poder nacional no contexto internacional". Passados 21 anos, o general Adhemar mantém sua opinião. "O Brasil tem um perfil que se ajusta muito a essas missões."
O desejo de militares e diplomatas de manutenção de tropas no exterior esbarrou nos gastos. Entre 2004 e 2017, a tropa no Haiti custou R$ 2,6 bilhões aos cofres públicos. De 2011 a 2018, o governo havia colocado R$ 483,5 milhões na Unifil para manter uma fragata, um helicóptero e as tripulações patrulhando as águas do Líbano. Nos últimos anos, gastava-se de R$ 80 milhões a R$ 100 milhões por ano com o contingente da Marinha no exterior, de acordo com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. Ao todo, durante os dez anos de operações, quatro fragatas, uma corveta e um navio de patrulha oceânico passaram pelo Líbano.
“A presença do Brasil nessas forças é uma modalidade muito original de soft power por meio de um poder hard sem os inconvenientes do hard power, da imposição da força, pois ela tem um contexto jurídico, sempre aprovado pelo Conselho de Segurança e dentro da carta das Nações Unidas”, disse Ricupero. Para ele, tratava-se de uma "maneira nobre de projetar esse poder".
Mesmo que a da força do Líbano estivesse prevista desde agosto de 2019, quando a Marinha anunciou a medida, o retorno da fragata brasileira acontece no momento em que o Brasil aumenta ainda mais seu isolamento internacional, por meio da política levada à cabo pelo chanceler Ernesto Araújo, que disse se comprazer em ser um pária diplomático. Ao mesmo tempo, o chefe do chanceler afirma ter provas de que houve fraude na eleição de Joe Biden – sem apresentá-las –, acusa a China de querer derrubá-lo com o coronavírus e diz que a Europa quer saquear a Amazônia.
Ninguém sabe qual o propósito de Bolsonaro em escalar crises com praticamente todos os maiores parceiros comerciais do Brasil. "É o sinal dos tempos nos retirarmos do último domínio (as forças de paz) em que tínhamos uma presença multilateral." O Itamaraty não se manifestou sobre o tema e não há notícia de que a chancelaria tenha procurado reverter a decisão sobre as forças de paz. "Esse tipo de atitude está em harmonia com a posição do Ernesto Araújo, que é hostil ao multilateralismo e ao que ele chama de globalismo."
E, assim, é em um governo, como o de Jair Bolsonaro – com um Estado-Maior alojado no Planalto dominando os principais ministérios civis e no qual os militares conseguiram emplacar um projeto de reajuste de salários que preservou a paridade e a integralidade das aposentadorias –, que o abandono das missões de paz punirá, não só os objetivos históricos da diplomacia brasileira, mas também os mais capazes entre os militares, cuja experiência no exterior constituía etapa essencial de sua formação. Em todos os governos há os que fecham os olhos e preferem o dinheiro no bolso, o cargo e os favores dos poderosos. São estes os que causam os desastres nacionais, como os argentinos descobriram nas Malvinas.
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