Caro leitor,
“Qualquer missão, em qualquer lugar, a qualquer hora, de qualquer maneira” é o lema das Forças Especiais (FE). Foi dentro desse universo que o general Eduardo Pazuello viveu parte de sua carreira militar. Para os que o conhecem, mais do que intendente, Pazuello é um FE, uma das igrejas do Exército. A prontidão para enfrentar a fome, o frio e a fadiga desses homens na guerra pode ser excepcional. Mas aplicada à política pode ter efeitos desastrosos, além de produzir frases para cativar a internet.
Quando radicais se encontram diante de um obstáculo legal, por exemplo, eles podem reagir de duas formas: ou tratam a todos como idiotas, contando uma lorota que só os tolos ou condescendentes acreditam, ou buscam no histórico de indisciplina e baderna nos quartéis de nossa República a justificação para absolver as trangressões disciplinares. Costumam ver os colegas como “idealistas” e perdoam seu “temperamento”. Acreditam que tudo se resume a uma questão de modo, de forma e não de conteúdo.
Para não ser expulso do Exército, Jair Bolsonaro, por exemplo, contou aos ministros do Superior Tribunal Militar (STM) a lorota dos quatro laudos que se contradiziam sobre sua caligrafia no croqui em que se mostrava onde seriam colocadas bombas. O jornalista Luiz Maklouf de Carvalho desmontou a mentira ao examinar os autos e ouvir as gravações da sessão do julgamento. Mas Bolsonaro conseguiu seu intento: a lorota fez o STM reverter a decisão do Conselho de Justificação, que o expulsava do Exército.
Agora é a vez de Pazuello tentar contar mais uma lorota para brincar com a seriedade da disciplina militar. Quer ele afirmar que o comício de Jair Bolsonaro no Rio, após a motociata do dia 23, não era político nem partidário. Como Bolsonaro não está filiado a partido nem há campanha eleitoral, estaria tudo resolvido: Pazuello não teria cometido transgressão disciplinar. Para os colegas que o criticam, a defesa de Pazuello é um deboche. Um influente general da ativa não consegue entender por que Pazuello não pediu para ir para a reserva a fim de se dedicar à política, pois o intendente não tem mais a mínima condição de voltar a comandar nos quartéis.
Não só ele defende a punição do intendente que Bolsonaro quer evitar, fazendo o Exército engolir mais uma lorota. Entre os bolsonaristas, além da defesa dos argumentos de Pazuello, existem os que começam a tolerar abertamente a volta da política aos quartéis, escancarando um pensamento que para eles sempre lhes pareceu natural: todo militar faz política e é preciso saber quem está do nosso lado. É isso que escreveu para a coluna um coronel da Aeronáutica, intendente como Pazuello. Ele ataca o general Santos Cruz por ter criticado Pazuello.
O coronel citou o histórico de seus colegas da Aeronáutica na participação em eventos políticos, como a proteção ao jornalista Carlos Lacerda, feita por oficiais da Força, o caso do grupo que esteve em frente da Escola Anne Frank, no Rio, para apoiar Lacerda no dia 31 de março de 1964 – os então coronéis Burnier, Dellamora, Paulo Victor e os capitães Mascarenhas e Leusinger. Falou ainda de Eduardo Gomes e sua participação na revolta do Forte de Copacabana, em 1922. Para ele, em termos de disciplina militar, nada disso é saudável, mas é inevitável.
A condescendência com o comportamento de Pazuello mostra que muitos dos que o apoiam têm os mesmos defeitos que gostam de apontar nos políticos civis e no Supremo Tribunal Federal. Querem mesmo é ter um juiz amigo, que lhes dê sempre razão, ainda que não tenham do seu lado razão ou lei. Trata-se da república dos peixes, do compadrio, das igrejas, como aquela que une os forças especiais, permitindo a Pazuello e outros contar com uma rede de amigos que lhes arranja boas posições dentro e fora do Exército. Pazuello levou dois coronéis e um general FE para a Saúde: os coroneis Élcio Franco (secretário executivo) Geoge Diverio (representante no Rio) e o general Ridauto Lúcio Fernandes (diretoria de logística). Quais as credenciais deles para essa missão?
O capitão de mar e guerra Mário Sérgio Pacheco de Souza, o Doutor Pimenta, era uma lenda na área de informações. Fuzileiro naval, mantinha na sua mesa no Centro de Inteligência da Marinha (CIM) a foto de um homem careca com terno e gravata. Ele o chamava de “seu Chico”, o funcionário civil Francisco de Assis Lima, conhecido como Chico Pinote, homem do Cenimar. Um dia, disse à coluna: “Você sabe que é um força especial? Sabe aquele paraquedas com um círculo preto? Não duvide do que ele é capaz.”
Anticomunista convicto, Mário Sérgio fizera nos anos 1970 o curso de operações especiais em companhia de policiais militares que mais tarde criariam o Bope, no Rio. Ele gostava de contar o exemplo de um colega fuzileiro que serviu de guia, a pé, para levar um Clanf (Carro Lagarta Anfíbio) pela orla até a praia de Copacabana, à noite. “O plano era, caso fosse necessário, retirar o papa Francisco, na Jornada Mundial da Juventude (em 2013), pelo mar.” Mário Sérgio morreu em 2020. Mas ele não é o único oficial das Forças Armadas que retrata os forças especiais dessa forma.
O problema é quando a missão não é mais salvar a vida do papa, mas salvar a de todos os brasileiros durante a mais mortal pandemia do século. Essa não era uma missão qualquer. Nem devia ser executada de qualquer maneira, principalmente se isso significasse seguir ordens do presidente contra a compra de vacinas e o uso de máscaras. Nem o general da ativa pode comparecer a qualquer hora em evento político partidário ou obrigar um jovem soldado negro e evengélico a puxar uma carroça em razão de seu amor pelo equinos. A disposição para cumprir em um cargo de natureza civil qualquer missão, de qualquer maneira, é uma das chaves para compreender o desastre sanitário que assola o País.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.