Caro leitor,
Em 1975, o coronel Bruno Éboli Bello era o chefe da Seção de Informações do Estado-Maior da PM de São Paulo quando o general Francisco Batista Torres de Melo, comandante da corporação, entrou em sua sala e conclamou: "Vamos pra rua, vamos caçar bandido!" Era isso que o comando da PM queria então: caçar bandidos. Os policiais mais produtivos eram premiados e promovidos. Um deles, oficial da Rota, o tenente Conte Lopes, foi promovido por bravura. A prática desgostava o fundador da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, coronel Salvador D'Aquino. Em 2004, disse: "Não existe bravura, mas cumprimento do dever".
Símbolo desse tempo é o caso Rota 66, quando três jovens de classe média foram metralhados por PMs, nos Jardins. O coronel Erasmo Dias, então secretário da Segurança, confessou que a apuração do caso foi fraudada para encobrir o crime. Ele próprio escondera uma arma que os homens da Rota diziam estar com os rapazes quando percebeu que ela não funcionava. "Eles (os rapazes) não estavam armados porra nenhuma. Depois vem a merda; conforme o caso, enruste uma maconha, conforme o caso, enruste uma arma. É uma autodefesa", disse, 30 anos depois (escute aqui a entrevista). A impunidade da Rota provocou uma escalada de mortes.
Depois de quatro décadas sendo questionada sobre a letalidade no patrulhamento, a Polícia Militar de São Paulo decidiu dar um passo rumo ao fim da polêmica sobre a legalidade de suas ações. O comandante-geral da corporação, coronel Fernando Alencar Medeiros, e o secretário da Segurança, general João Camilo Pires de Campos, decidiram adotar um programa de bodycams inédito no País. As câmeras instaladas nos corpos dos policiais gravam integralmente o turno de trabalho, sem que eles possam desligá-las.
Ao todo, os policiais militares de serviço mataram em média 131 pessoas por trimestre neste século no Estado, somando 10.812 mortes em tiroteios até 30 de junho. No último mês do segundo trimestre de 2021, 18 batalhões da PM foram equipados com 3 mil câmeras – outras 7 mil serão instaladas na terceira fase do programa. Por enquanto, o projeto atinge ainda um número restrito de batalhões – a PM de São Paulo tem 134 unidades e um regimento de cavalaria. Mesmo assim seus efeitos foram imediatos.
No primeiro mês, nenhum dos 18 batalhões registrou mortos em confrontos, entre eles a Rota. Todos eles haviam sido escolhidos para receber as câmeras por causa da alta letalidade de suas ações. No segundo mês, só uma morte foi registrada nas 18 unidades – nenhuma na Rota. No fim do terceiro trimestre, a PM registrou 72 casos de mortes em ações de policiais no Estado, um total 42% inferior ao mesmo período de 2020. Trata-se do menor número desde o primeiro trimestre de 2013.
Os dados mostram ainda que em apenas quatro dos 83 trimestres deste século foram registrados menos mortes de autoria de policiais de serviço no Estado. Confirmando o efeito imediato da medida, uma pesquisa feita pelas universidades de Warwick e Queen Mary, London School of Economics (todas essas no Reino Unido) e da PUC-Rio mostrou que em Santa Catarina – outro Estado que adotou as câmeras nos uniformes dos PMs – a letalidade policial caiu 61%.
Tudo ia muito bem até que o controle das imagens feito pela Corregedoria da PM revelou o primeiro caso de farsa montada pelos PMs de um dos 18 batalhões para encobrir um assassinato. Em 9 de setembro deste ano, policiais do 3.º Batalhão de Ações Especiais da Polícia (Baep), de São José dos Campos, mataram um acusado de roubos e tentaram matar outro após uma perseguição. A região do Vale do Paraíba assistiu a um crescimento exponencial nos últimos anos de mortes provocadas por policiais, tornando-se a segunda área do Estado com maior número de casos.
Os corregedores examinaram minuciosamente as imagens de nove câmeras. Apesar do esforço dos PMs para impedir a gravação do que aconteceu, encobrindo propositadamente as câmeras com as mãos, as imagens e os áudios mostram quando os acusados de roubo se desfizeram de suas armas – uma de brinquedo e um revólver, com os quais haviam assaltado uma loja. As imagens mostram o momento em que um soldado tenta matar um dos bandidos. Depois é possível ver outro bandido desarmado e com as mãos na cabeça ser alvejado por três tiros de fuzil disparados por um sargento. Tudo com o áudio sincronizado com o vídeo.
Não parou por aí. O Inquérito Policial Militar (IPM) – encaminhado à Justiça Militar para apuração dos crimes militares e para o Tribunal do Júri, para a análise dos crimes contra a vida – foi concluído pela Corregedoria com o pedido de prisão dos policiais. Para os responsáveis pela apuração, não restou dúvida de que os policiais participaram de uma execução. As imagens mostram ainda claramente quando um dos PMs planta uma arma nas mãos do homem assassinado.
Depois, o soldado ainda diz ao sargento que não sabia que o bandido desarmado que ele baleara estava com colete a prova de balas, se não teria dado um tiro no rosto. Ou seja, o PM lamenta não ter conseguido executá-lo. As imagens mostram os PMs ostensivamente com as mãos em cima das câmeras. O que pretendiam esconder? Segundo a Corregedoria, a farsa da simulação do tiroteio. E até o promotor de Justiça de São José dos Campos, que não viu provas para concordar com o pedido de prisão contra os PMs feito pela Corregedoria, acabou se tornando alvo de apuração da Corregedoria do próprio Ministério Público do Estado.
Mais claro impossível. Exceto para o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e para o deputado estadual Conte Lopes (Progressistas). Depois de criticar as câmeras em suas redes sociais, o filho do presidente foi à Assembleia Legislativa de São Paulo no dia 29 de novembro, testemunhou e deu seu apoio ao discurso de Conte Lopes, um veterano da Rota inconformado com as câmaras que denunciaram "a mágica" – como ele mesmo se refere às encenações de tiroteio – dos policiais do Baep e com o trabalho da Corregedoria.
Conte tentou ligar o destino dos policiais a uma suposta ação da imprensa – no caso, a Rede Globo – que procuraria atacar os homens do Baep para constranger o presidente Jair Bolsonaro. Mas em nenhum momento o IPM da Corregedoria – ou o noticiário – fez essa relação. O capitão Conte Lopes chama de "porcaria" e de "besta" o coronel Glauco Carvalho, que comandou o Policiamento da Capital e defendeu a punição dos policiais. Isso porque o oficial deu entrevistas para o Estadão criticando Bolsonaro. "Só ele ataca o presidente (Bolsonaro) na Polícia Militar." Conte precisa conversar mais com seus colegas.
Depois, o deputado critica o tenente-coronel Gilson Costa, diretor operacional da Corregedoria, e o coronel Robson Cabanas, um dos responsáveis pelo programa das câmeras. "Corregedoria a gente sabe o que é: é sempre contra. Não faz porra nenhuma e é contra quem trabalha." Eis um clássico: até Homer Simpson reclama da Corregedoria em um dos episódios de Os Simpsons. Sobre o coronel Cabanas, Conte Lopes diz: "Esse inventou as câmeras. Vai acabar com a polícia". Também parabenizou o promotor, cuja atuação agora está sob análise da Corregedoria. E não parou aí.
Por fim, defendeu os PMs: "Esses coitados desses PMs estavam trabalhando. Doria, você está indo embora. Você destruiu a PM. Essas imagens são uma covardia. Isso é uma covardia. Os policiais estão errados? Comando da PM, acorda". O artigo 121 do Código Penal é simples e claro: matar alguém. A pena vai de 6 a 30 anos. Por fim, sobrou até para as câmeras: "Os homens trabalhando, defendendo a sociedade e a Corregedoria com essa câmera idiota que só serve para ferrar o polícia". Pois é. A culpa é das câmeras. Na semana passada, elas serviram para a 1.ª promotoria do Tribunal de Justiça Militar denunciar oito dos PMs. Para ela, o "trabalho" feito pelos PMs pode ser enquadrado como fraude processual, falso testemunho e falsidade ideológica.
As acusações serão analisadas pelo juiz Ronaldo João Roth. Ele terá 400 páginas de relatórios com imagens e vídeos mostrando a conduta de cada policial. O caso promete ser um divisor de águas na PM de São Paulo. No Rio, o então deputado Flávio Bolsonaro condecorava policiais acusados de assassinatos que mais tarde se tornaram milicianos do crime organizado. Em São Paulo, o deputado Eduardo Bolsonaro testemunha o discurso de Conte Lopes e dá apoio ao deputado, apesar das provas reunidas pela Corregedoria da PM.
Quando se tenta pôr o biombo da política para proteger delinquentes, o resultado é a anomia sem a qual o Escritório do Crime não existiria. Os chefes da Segurança Pública de São Paulo sempre tiveram orgulho de dizer que não há lugar no Estado onde a polícia não entra, que nunca a polícia paulista precisou do Exército ou da Marinha para agir onde quer que fosse. Policiais que pensam que podem decidir quem é bandido, quem morre e quem será preso ou apenas revistado invariavelmente começam a praticar outros crimes: sequestros, tráfico, roubos. Quem pode o mais, pode o menos.
Um policial que acha que pode matar não tem limites. Se hoje a vítima é um ladrão, amanhã ela pode ser você ou seu filho, em uma briga de trânsito, em uma discussão entre vizinhos ou quando ele metralha jovens desarmados, como os três da Rota 66. As câmeras instaladas pelo comando da PM vão ajudar a aumentar a legitimidade do trabalho policial ao mesmo tempo em que a cultura da violência, que sobrevive em nichos da polícia, será cada vez mais acossada pelo império das leis. Não adianta espernear ou gritar das tribunas. Ou conceder medalhas para quem mata. A tecnologia mudou o jogo. O tempo dos caçadores está chegando ao fim.
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