Caro leitor,
É inglória a tarefa de tentar um golpe de Estado sem dispor de tropas. Um grupo de 20 generais franceses da reserva divulgou no dia 21 de abril um manifesto assinado por 1.500 militares – 18 dos quais da ativa –, ameaçando o governo de Emmanuel Macron. Acusam o centrista de ser leniente com a criminalidade e com os imigrantes de origem muçulmana. Próximos à extremista de direita Marine Le Pen, o grupo afirmou que, se nada fosse feito pelo governo, a "frouxidão se espalharia pela sociedade, provocando uma explosão e a intervenção de nossos camaradas em uma missão perigosa de proteção dos nossos valores civilizacionais".
Os generais extremistas concluíram: "Acreditamos que não é mais tempo de se tergiversar, se não, amanhã, a guerra civil porá um termo a esse caos crescente, e os mortos, pelos quais os senhores serão responsáveis, se contarão aos milhares”. Tinham caneta e papel, mas nenhum homem armado para cumprir a ameaça. No Brasil, um grupo ultrabolsonarista encastelado no Clube Militar divulgou um texto apócrifo sobre a iniciativa dos franceses, liderada pelos generais de exército Christian Piquemal e Gilles Barrie. Dias depois, o presidente do Clube resolveu emular os colegas europeus.
O general Eduardo José Barbosa publicou um texto com críticas e ameaças aos Poderes Legislativo e Judiciário. Como a extrema-direita está no poder no Brasil, seus radicais não precisam ameaçar derrubar o presidente; eles dirigem seu ódio a quem lhes mostra os limites constitucionais, como relatou o editorial do Estadão Ameaças e Arreganhos. Diz o chefe do clube que, se Jair Bolsonaro fechar os demais Poderes, estará cumprindo a Constituição "para restabelecer a ordem". Devia saber que, neste País, "não é mais de bom tom" dar à Constituição o mesmo valor das leis na Uganda de Idi Amin Dada.
Escreveu o general: "Que as algemas voltem a ser utilizadas, mas não nos trabalhadores que querem ganhar o sustento dos seus lares, e sim nos verdadeiros criminosos que estão a serviço do 'Poder das Trevas'." Para o general, as trevas estão por trás da CPI da Covid. Ele comparou os integrantes da comissão aos traficantes Fernandinho Beira-Mar e Marcola.Sobre os ministros do Supremo Tribunal Federal, afirmou: "Se não conseguem inocentar o bandido de estimação, basta encontrar subterfúgios para anular processos". Seu artigo tem o título O Poder das Trevas no Brasil. Ele não traz uma palavra sobre o Centrão ou sobre Flávio Bolsonaro...
Quando a República nasceu, Antonio Conselheiro costumava predicar, segundo Euclides da Cunha, por largo tempo, "olhos em terra, sem encarar a multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao arrepio do bom senso, em melopeia fatigante...Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse..." Seus seguidores tinham-no como um profeta, um emissário das alturas, que apontava aos sertanejos os pecadores e o caminho da salvação.
Mais de cem anos depois, o general Eduardo escreveu: "'O Brasil é a Pátria do Evangelho! Natural, portanto, que o poder das trevas queira destruir nossa Nação'." E explicou: "Evidente que, embora muitos acreditem literalmente nesta citação, ela abre esse nosso pensamento tão somente para sintetizar o momento que atravessa nosso País, afinal, como muitos dizem, bastou a eleição de um Presidente que acredita em Deus para que todo o inferno se levantasse contra ele." É assim que o general aponta à Nação quem são os pecadores e onde está a salvação.
Dias antes da publicação de seu artigo, o site do Ministério da Defesa registrava que o ministro Walter Braga Netto havia mantido dois encontros– na sexta-feira, dia 23 e no domingo, dia 25 – com integrantes da reserva, no Rio. O ministro não esclareceu se ele se encontrou com o general Eduardo ou o que tratou com os integrantes da reserva. Eduardo era um jovem capitão quando o tenente-coronel Cyro Leonardo de Albuquerque, então comandante do 7.º Grupo de Artilharia de Campanha, em Olinda, mandou ler no quartel a nota do ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, sobre o comportamento desonroso do então capitão Bolsonaro. Eduardo conhece o passado do seu colega de turma, que deixou a caserna para se tornar um político.
Trinta anos depois, as manifestações de militares da reserva trazem à memória os episódios de indisciplina que marcaram os quartéis na maior parte da República, às custas da profissionalização do Exército, solapando a democracia e o desenvolvimento das instituições. Ao analisar a obra do cientista político Oliveiros S. Ferreira, Vida e Morte do Partido Fardado, seu colega Eliezer Rizzo de Oliveira lembrou que a ação do partido fardado foi facilitada pela impunidade dos militares que se levantaram contra a ordem constitucional. "Tira-se daqui uma importante lição política: aplicação das normas republicanas confronta o partido fardado, ao passo que a impunidade reforça a autonomia militar."
Eis aqui a diferença entre o caso brasileiro e o caso francês. François Lecointre é o chefe do Estado-Maior daquele país. No mesmo dia em que o general Eduardo pregava o golpe no Brasil, Lecointre anunciou que os 18 militares da ativa que assinaram o documento ameaçando Macron serão submetidos a conselho militar. Além, disso, afirmou que os que ainda estivessem na reserva (deuxième section) seriam reformados imediatamente. "Terminado os conselhos de justificação, será o presidente da República que assinará os decretos de reforma", revelou ao jornal Le Parisien.
"A todos, em particular ao general (Christian) Piquemal que já foi reformado (após ter se envolvido em manifestações contra imigrantes em 2016), eu nego o direito de tomar posições políticas usando para isso a sua graduação." No Brasil, norma idêntica do Estatuto dos Militares é letra morta. O chefe do estado-maior completou que, para ele, a aposentadoria de ofício dos envolvidos já estava decidida. A França de Lecointre não é a Argélia de Raoul Salan, nem os signatários da carta dispunham de tropas, como seus colegas que tentaram o putsch em 1961, contra o presidente De Gaulle.
Salan e seus companheiros diziam que De Gaulle traía os franceses nascidos na África, ao conceder a independência à colônia. Mas quando a Pátria estava diante de um perigo de morte, em 1940, alguns dos que tentaram falar grosso com De Gaulle em 1961 foram trabalhar sob as ordens de Vichy. As ligações entre militares e a extrema-direita são um fenômeno internacional. Na Alemanha, ele tem as cores do neonazismo; na Espanha, os candidatos a Tejero Molina são os franquistas de sempre e, nos Estados Unidos, vestem o boné de Donald Trump. O radicalismo os torna traidores de suas Nações, da obediência que devem ao Poder Civil e às Constituições.
A radicalização do Clube Militar acontece ao mesmo tempo de outro fato em sentido contrário: o silenciamento de oficiais da ativa que usavam o Twitter para publicar propaganda eleitoral de Bolsonaro, até nos dias que antecederam o pleito de 2018. Uma parte dos 82 oficiais flagrados fazendo 3,4 mil postagens políticas entre 2018 e 2020 excluiu seus tuítes partidários ou fechou o acesso de suas contas ao público. O fenômeno pode indicar o desgaste do governo Bolsonaro na caserna, já que 99% das manifestações eram de apoio ao presidente. Ou, como observara Oliveiros S. Ferreira, o estabelecimento militar parece se impor uma vez mais ao partido fardado.
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