Caro leitor, A falsidade deliberada e a mentira descarada são usadas como meios legítimos para alcançar fins políticos desde os primórdios da história documentada. Não é preciso conhecer a análise de Hannah Arendt sobre a divulgação dos Papéis do Pentágono, os documentos sigilosos sobre a guerra do Vietnã, para saber que a veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas.
Um coronel da Aeronáutica próximo ao núcleo bolsonarista que domina os clubes militares das três Forças enviou à coluna uma das muitas patranhas que circulam em grupos de WhatsApp. Eram dados de uma pesquisa eleitoral que dariam a Jair Bolsonaro a popularidade de um Saddam Hussein na Bagdá dos anos 1980. Alertado de que a notícia parecia desinformatzia, o oficial respondeu que "a mentira nem sempre é mentira, mas omissão para preservar mal maior". E completou sobre a tal pesquisa:
"É fraca. Mas depois de a CPI dar o maior crédito a um cara com prontuário nada edificante, até dá para deixar passar esse lance de pesquisa eleitoral". E perguntou: "A propósito, vocês (jornalistas) deram destaque à maior motociata da história, a de agora, em Santa Catarina?" Pouco importa se a notícia é verdadeira, se a manifestação é grandiosa ou se as urnas eletrônicas funcionam. A mentira quase nunca visa ao inimigo, aos que não podem ser convertidos, mas ao consumo doméstico, à propaganda caseira e a enganar o Congresso.
Bolsonaro não inventou nada de novo. E, desde que foi acusado de mentir em Conselho de Justificação até agora, sempre obteve sucesso. Sua pregação contra a urna eletrônica – desmentida por peritos da Polícia Federal e por 18 ministros e ex-ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – contaminou fortemente os militares que o apoiam. Isso pode ser medido pela mudança de humor entre policiais militares detectada pelo Instituto Idea, divulgada pela repórter Maria Carolina Trevisan.
A pesquisa mostra que, em maio deste ano, 55% dos policiais militares entrevistados em cinco Estados disseram não confiar nas urnas eletrônicas contra 15% que acreditavam na segurança da máquina. Para se ter uma ideia da confusão causada pelo bolsonarismo, em outubro de 2018, esses números eram 35% e 30%, respectivamente. Pior: 54% dos PMs defendem a volta do voto impresso ante 45% que se declararam favoráveis à manutenção do voto eletrônico – quase três anos antes, 55% queriam a urna eletrônica e 35% a volta do papel nos pleitos.
Não se sabe ainda se Bolsonaro, como afirmam os críticos, usa a mentira da fraude nas urnas eletrônicas para preparar um golpe ou apenas para dar coesão e objetivo à sua gente. Conspiração ou provocação? Não é preciso, porém, buscar nas ações psicológicas da Guerra Fria um paralelo. Basta olhar para a história da República. O dia 14 de novembro de 1889 registrou uma dessas ações. Era manhã, quando, pela Rua do Ouvidor, no Rio, o major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro, em trajes civis, começou a espalhar um boato: o gabinete liberal de Visconde do Ouro Preto mandara prender o marechal Deodoro da Fonseca e o major Benjamin Constant.
Deodoro retornara à capital federal dois meses antes e, convalescente, estava em casa. Não havia ordem de prisão contra os dois oficiais, como também era mentira a informação de que unidades do Exército seriam transferidas da capital ou que a 2.ª Brigada seria atacada por forças leais ao governo. Tampouco havia plano para dissolver o Exército. Pouco importa. Os boatos ajudaram a mobilizar as tropas que marcharam horas mais tarde para dar fim ao Império e instalar a República.
Antes da revolta dos 18 do Forte, o clima político foi crispado por outra mentira: as cartas falsas atribuídas a Arthur Bernardes. Publicadas nos dia 9 e 10 de outubro de 1921, elas traziam ofensas ao líder da Reação Republicana, Nilo Peçanha, e aos militares. Serviram para mobilizar a mocidade militar nos meses que antecederam ao primeiro levante tenentista, em 1922.
Getúlio Vargas e o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro se valeram também de um documento falso – o Plano Cohen – para atestar a existência de uma conspiração comunista e legitimar o golpe de 10 de novembro de 1937, que instituiu a ditadura do Estado Novo. Foi a primeira vez, mas não a última, que o anticomunismo azeitou as engrenagens golpistas com uma mentira. Em suas memórias, o marechal Odylio Denys, que primeiro tentou impedir a posse de João Goulart em 1961 e depois ajudou a depô-lo em 1964, escreveu que a razão das restrições feitas a Jango era ele ser comunista. "Embora eleito vice-presidente da República, embora na posse do direito de assumir a Presidência quando Jânio Quadros renuncia, impedido estava ele de exercer o cargo pelo fato de haver-se, depois de eleito, vinculado aos comunistas e ao partido Comunista, tornando-se ele mesmo um comunista."
A história de que Jango era comunista era então a "mentira necessária contra o mal maior". O general Olímpio Mourão Filho reconheceu em suas memórias: "É evidente que Goulart e (Leonel) Brizola nunca foram comunistas". O homem que saiu de Minas com seus homens para depor o governo repudiou o trecho de seu Manifesto de 31 de Março que acusava Goulart. "Eu não redigi aquela frase, na madrugada de 31 de março, quando fiz meu manifesto em cerca de 18 minutos. Mas entreguei-o ao atual ministro Antônio Neder (nomeado para o STF em 1971) para que o burilasse e, ao que parece, ele acrescentou que Goulart era comunista."
Pouco depois do golpe, Mourão contou ao repórter José Stacchini, do Estadão, que seus oficiais achavam que ele "não estava bem da cabeça" quando falava de seus planos contra o governo: "Vamos partir e todas as regiões do País vão nos acompanhar". Escreveu Stacchini: "Mourão Filho tem um modo peculiar de conspirar: conspira abertamente, mas tão abertamente que aquilo não parece conspiração. Parece provocação".
Quase 60 anos depois, Bolsonaro parece repetir Mourão. Diz que sem o voto impresso não haverá eleições em 2022. Há muitos generais que não acreditam no que o presidente afirma. Repetem o mesmo que diziam os subordinados de Mourão: quem conspira não faz isso abertamente. Um deles, já na reserva, confidenciou na campanha eleitoral, em 2018, a um interlocutor que eles, os generais, iam controlar "o doidão"...
Pensar que o que Bolsonaro faz é provocar em vez de conspirar está ligado à ideia do sigilo, dos arcana imperii. Os segredos de Estado são comumente vistos na história como um princípio do poder estatal. E seu abuso está na base das utopias autoritárias. Não há como garantir a democracia e as liberdades se os agentes do Estado escondem informações; se desejam acumular segredos e expor os súditos à luz perene do dia e se a verdade do Estado é a mentira para os cidadãos.
No Tratado Político, Spinoza mostra por que liberticidas precisam do segredo: "Àqueles que detêm o poder político é impossível mostrar-se bêbado ou acompanhado de prostitutas, bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis estabelecidas por eles mesmos e, apesar disto, conservar a sua majestade". Corre-se o risco, segundo o filósofo, de "transformar o temor em indignação e, consequentemente, o estado civil em estado de guerra".
Então por que Bolsonaro afirma que vai agir fora das quatro linhas da Constituição em vez de manter em segredo suas intenções? É que se trataria – diz um general – de ameaça e não de um plano. Mas o capitão acredita no que diz. E convence os apoiadores por isso. Ele olha a história do País e conclui que as chances de se tornar vítima de suas histórias são ínfimas. Deu certo no Exército. Deu certo no STM, no Congresso e também nas eleições de 2018. Quanto mais bem-sucedido for o presidente, mais ele arriscará. Após chamar o senador Ciro Nogueira (Progressitas-PI) para ocupar a Casa Civil, um general do Alto Comando acreditou que tudo ia se acalmar. A partir dali, a política profissional teria lugar no Planalto. Em vez disso, veio a tempestade de inquéritos no STF e no TSE.
Em circunstâncias normais, o mentiroso é derrotado pela realidade, para a qual não há substituto. Assim é com a pandemia e seus 560 mil mortos. Por maior que seja a rede de falsidades, ela nunca será suficiente para esconder a dimensão da tragédia. Assim também com as urnas eletrônicas. Em 25 anos, mais de um bilhão de votos foram contados para vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores e presidentes sem que ninguém – exceto Bolsonaro – contestasse a lisura das eleições. Pode-se não dar crédito a Bolsonaro quando ele ameaça a democracia. Mas não se deve ignorar que a mentira ronda a história dos golpes no País. Sem ela, nenhum autoritarismo é possível.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.