Caro leitor, Duas vezes por semana, o professor Manoel Domingos Neto aparece pontualmente nos computadores de uma centena de pessoas. Ele é o organizador do curso Introdução ao Estudo do Militar Brasileiro. Entre seus palestrantes estão antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, historiadores e ex-ministros como Nelson Jobim, Celso Castro, Eliezer Rizzo de Oliveira, João Roberto Martins Filho e Luiz Eduardo Soares.
Desde agosto, o objeto de estudo do curso foi dissecado em suas manifestações ao longo da história, de seus marcos referenciais, símbolos e estruturas, além de sua relação com a democracia. Na semana passada, foi a vez de Domingos passar a palavra ao ex-ministro Jobim. Ele tratou da Estratégia Nacional de Defesa. Nenhuma campanha presidencial assistiu até hoje a um debate sobre o tema. Mas os candidatos a presidente em 2022 deviam gastar duas horas de suas vidas para escutar o ex-ministro e analisar a militarização do Ministério da Defesa.
Jobim expôs a formação da Pasta como o resultado de um processo histórico: o afastamento longo e paulatino dos militares da política. Oliveiros S. Ferreira mostrou em seu livro Elos Partidos que os militares assumiram um protagonismo político diante do fracasso das classes sociais de unir politicamente o Brasil. E essa desorganização expôs a República e sua história ao arbítrio, fazendo da Nação, nas palavras de Gilberto Freyre, pouco mais do que um "cenário de paradas ou simples campo de manobras".
O ex-ministro defendeu a criação de uma carreira civil de analistas de Defesa necessária à estabilidade burocrática e à continuidade de políticas públicas do setor. O ministério teria de contar com uma área civil e outra militar para que se efetivasse a subordinação do Poder Militar ao Civil. "Quando digo subordinação das Forças Armadas ao Poder Civil não significa exclusão dos militares das discussões civis dos temas que envolvam a Defesa."
Esse era o plano quando a Pasta foi criada. Hoje, afirma Jobim, "está tudo militarizado". É aqui que o ex-ministro mostra o tamanho da tarefa do futuro presidente: redesenhar a participação dos militares na administração do País, para preservar o profissionalismo das Forças e a democracia. Jobim vai além de fornecer um diagnóstico. Ao falar de sua experiência como ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, mostrou um caminho para a convivência e a construção de consenso entre civis e militares, mesmo nos temas em que visões distintas sobre a história e a política predominam.
Um deles foi a criação, em 1995, da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Era o desdobramento do acordo político que incluiu a Lei de Anistia na Constituição de 1988. Os torturadores não seriam punidos, mas o Estado reconheceria a responsabilidade pelos atos de seus agentes. Jobim consultou a cúpula militar. Ficou acordado que, no caso de o desaparecido ou de o militante de organização de esquerda ter sido morto depois de preso, o Estado indenizaria a família da vítima.
Tudo ia bem até junho de 1996, quando Vicente Chelotti, diretor-geral da Polícia Federal, procurou o ministro com uma pilha de documentos. Eram laudos e relatórios mantidos por 25 anos em um cofre da superintendência do órgão, em Salvador, sobre o caso do ex-capitão Carlos Lamarca. Morto em uma ação do Exército em Brotas de Macaúbas, na Bahia, Lamarca era, para os integrantes do regime militar, o símbolo da traição. Ao se unir à Vanguarda Popular Revolucionária e, depois, ao MR-8, tornara-se um herói para a guerrilha.
As feridas da luta armada no Brasil eram ainda recentes. Jobim apanhou a papelada e leu. Viu que os documentos mostravam que Lamarca fora morto quando estava sob custódia dos militares que o haviam localizado. Pôs tudo debaixo do braço e procurou o presidente Fernando Henrique. Disse que ia enviar os papéis à comissão, que ela decidisse o que fazer com o caso. Antes, porém, procurou o Ministro do Exército, general Zenildo de Lucena, e o chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso.
Zenildo folheou os papéis e concluiu: "A Nação precisa tomar conhecimento desses documentos". A lição do general Zenildo cobre de vergonha os guerreiros ideológicos do presente, os que buscam falsificar a história, divulgando informações falsas para manter arcana imperii de um passado violento, de quem renunciava à construção do consenso e, em razão do medo hobbesiano, queria substituir o diálogo e usurpar a soberania popular em nome do governo de poucos. O general pediu a Jobim uma semana para avisar seu pessoal.
O próximo passo de Jobim foi chamar ao seu gabinete os advogados Sigmaringa Seixas e Luiz Eduardo Greenhalgh. Contou o que havia encontrado e a decisão de mandar o material à comissão. Mas queria que o fato não fosse utilizado para emparedar os militares. Seixas e Greenhalgh também pediram uma semana para informar seus colegas. Quando os documentos foram encaminhados á comissão, o processo sobre o ex-capitão andou. Acabaria aprovado em 11 de setembro de 1996 por 5 votos a 2.
Na época, Jobim encerrou a polêmica, dizendo: "Não cabe à comissão dizer se Lamarca era herói ou bandido, mas sim dizer se havia condições de preservar sua vida depois da prisão, que é responsabilidade do Estado". Pode-se discutir o tamanho da indenização, seu alcance, as provas de cada caso. Mas não se pode negar o óbvio. Hoje, até isso é negado na Esplanada pelos militares do governo. Um exemplo são os votos do general Rocha Paiva, na Comissão de Anistia.
Ao analisar o pedido de anistia da professora Cláudia de Arruda Campos, ex-militante da Ação Popular, que foi presa, perdeu estudo e trabalho durante o regime, o general se exaltou: "O que aconteceu com ela não foi perseguição política, é porque ela era uma militante de organização terrorista! Se ela diz que era da AP tem de assumir a responsabilidade pelo que disse". Rocha Paiva age como juiz auditor. Quer definir quem é herói e quem é bandido. Devia se limitar a cumprir a lei, fruto de acordo político, o mesmo que manteve fora das grades seu amigo Carlos Alberto Brilhante Ustra. Jobim mostra o caminho para reconstruir consensos destruídos por Bolsonaro. O ex-ministro conclui: "A relação com o militar é fácil desde que seja transparente. Não se pode esconder o jogo".
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