Caro leitor, Os militares de Bolsonaro deviam se perguntar por que é tão difícil encontrar na sociedade algum educador ou médico capacitados para fazer parte do governo. Onde achar um profissional de respeito – e não um militante– que aceite trabalhar na pasta da Saúde por mais de um mês? Por que em um ano e meio o bolsonarismo não produziu nada na Educação que não fossem devaneios e gestões desastrosas? Por que a repulsa em nomear um educador de prestígio para o cargo? A razão é o conflito cultural e ideológico que os militares de Bolsonaro querem impor ao País, verdadeira prioridade de governo.
O bolsonarismo não governa; conduz uma guerra. Os inimigos são todos os que não se submetem à sua visão de mundo e às curas milagrosas. O ministro da Economia se regozija por ter lido John Maynard Keynes no original. Qualquer jovem aos 18 ou 19 anos que não tivesse lido O Fim do Laissez Faire e o Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda não seria admitido em um debate econômico nos anos 1980. Não fez, portanto, mais que a obrigação. Mas sabia poder vangloriar-se. É que não havia quem lhe opusesse referências bibliográficas mais sólidas na reunião do dia 22 de abril.
Não há um Gilberto Freyre no governo. Nem um Eduardo Portella. Sobram ministros e candidatos ao cargo cujos currículos se resumem a achincalhar quem faz ciência, educação e cultura. Em torno da militância bolsonarista existe uma ralé com seus cursos inconclusos, diplomas questionáveis e teses irrelevantes. Todos uns gênios incompreendidos, como o dançarino que dirigiu a Educação. A ditadura teve o decreto 477 para cassar alunos e professores. Weintraub e o bolsonarismo querem fazer o mesmo, cortando-lhes o dinheiro estatal nas ciências humanas. Guerra é guerra.
Com o 477, o regime expulsou da academia intelectuais como Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Isaias Raw, Paulo Mendes da Rocha e Villanova Artigas. Aqui estão apenas nomes da USP, conforme o relatório escrito pela professora Janice Theodoro. Ele mostra que é difícil encontrar uma área do conhecimento em que o regime não tenha ceifado parte do que de melhor a ciência, a cultura e o saber nacionais produziam. Os militares do passado também fizeram sua guerra.
E o que produz o bolsonarismo? Seus textos nas redes sociais têm em comum o radicalismo, o fanatismo político de um anticomunismo e obscurantismo que não foi eleito pelo povo. Este desejava dar um basta à corrupção e não voltar à Idade Média. Em meio à crise na Educação e na Saúde, os militares bolsonaristas aplaudiram o artigo do general Eduardo José Barbosa, na Revista do Clube Militar. "É o que a maioria de nós pensa", disse um coronel que assinou um dos recentes manifestos contra o STF. De fato, pode-se dizer que o inconformismo do general com a impunidade é compartilhado por amplos setores da população. Mas o artigo de Barbosa mostra ainda o grau de militância a favor de Bolsonaro que perdura nas Forças Armadas mesmo após um ano e meio da posse. Ninguém mais tem o direito de dizer que não imaginava o que seria o governo do capitão. Se uma ou outra decisão do STF pode– e deve – ser discutida, a verdade é que o tribunal agiu da mesma forma com os governos anteriores, barrando ações e nomeações, como a filha de Roberto Jefferson, que foi impedida de tomar posse no Ministério do Trabalho. O general elogia os feitos da ditadura no combate ao comunismo e silencia sobre violações aos direitos humanos. Nenhum palavra sobre o legado do presidente Figueiredo à Nação: uma inflação de 215% ao ano (IPC, 1984), uma dívida externa impagável, centenas de estatais improdutivas e milhares de obras inacabadas. Nem o combate ao crime se salvava: foi em 1979 que nasceu o Comando Vermelho, no Rio. Barbosa reclama do fato de os políticos não terem levado adiante a CPI da Lava Toga. Mas não diz quem lutou contra a comissão. Se o fizesse, teria de nomear o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). E se quiser saber como e por que o filho do presidente agiu contra a CPI, basta telefonar para o senador Major Olímpio (PSL-SP).
Quem diz querer combater a corrupção deve começar em sua própria casa. A guerra justifica o esquecimento e a mentira? O combate contra o tal do marxismo cultural é a alma do bolsonarismo. Nele existem apenas pessoas mais ou menos comprometidas com um projeto de poder do qual participam sites e influencers que têm na mentira, disfarçada de notícia, o combustível do conflito. A possibilidade de que a verdade factual sobreviva diante do assédio do poder é escassa. Fatos e eventos– dizia Hannah Arendt – são mais frágeis do que axiomas, descobertas e teorias. A chance de a matemática euclidiana ser descoberta se o seu autor morresse antes de legá-la ao mundo é infinitamente maior do que a de um ato acobertado pela mentira de um governante.
A mentira indica a capacidade humana de pensar as coisas de forma diferente daquela que elas são. Requer, portanto, a imaginação, sem a qual toda ação é impossível. A mesma capacidade de transformar a realidade age para negá-la pela mentira. E esta será mais eficiente na medida em que o seu autor dela se convencer. Mas, quanto mais bem-sucedido for o mentiroso, maior a probabilidade de ele ser vítima de suas próprias histórias. Eis por que a ideia de uma conspiração do suposto marxismo cultural fomentado por George Soros, ONGs globalistas e professores maconheiros e pervertidos paralisa este governo e suas ações. A guerra do bolsonarismo quer apagar a verdade factual. Mas é simplesmente impossível esconder que a cloroquina não funciona para prevenir a covid-19 quando o mundo abandona essa ideia. Quem vai, afinal, pagar a conta do desperdício feito com o placebo do governo? Quem pode enganar os satélites e apagar as imagens das queimadas na Amazônia? Ao falar sobre a mentira na política, Celso Lafer lembrou o padre Antônio Vieira e seu Sermão da Quinta Dominga da Quaresma: "A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena."
A drôle de guerre do bolsonarismo condena o País a amanhecer sem ministros da Saúde e da Educação. São 50 dias com um general interino na primeira. E talvez surja outro militar para dirigir a segunda. Enquanto a política for mera continuação da guerra, não haverá pacificação possível no País. Qual o tipo de paz, afinal, procuram os generais de Bolsonaro promovendo esse conflito? Alguém deveria lembrá-los que quem ganha eleição também pode perder– veja o PT, que se pensava imbatível. A Nação já viu muita gente subir a rampa. Um dia, todos descem.
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