Caro leitor, o general Santos Cruz estava cuidando da roça quando tocou o telefone em sua casa. Queriam avisá-lo do conteúdo do inquérito dos atos antidemocráticos investigados pela Polícia Federal divulgado pelo Estadão. Pouco depois, começaram as chamadas dos jornalistas. Para a Coluna do Estadão, o general disse que nada daquilo lhe causava surpresa: “É lastimável o fluxo de dinheiro para alguns apoiadores, As consequências tem de ser dentro da lei.” O general torce. Contar a razão disso ajuda a pôr luz em alguns dos principais eventos do governo de Jair Bolsonaro.
Os privilégios aos blogueiros inventados pelo bolsonarismo para fazer propaganda do governo e gerar lucro para os envolvidos nessa operação não surpreenderam o generalporque Santos Cruz conheceu de perto a ascensão de pessoas como Allan dos Santos, um dos parvenus investigados pela PF. Afinal, quem bancava as viagens a Brasília, as instalações confortáveis e as estadias no exterior dessa turma? É o que a PF e o general gostariam de saber.
Uma coisa, no entanto, o general sabe: quem abriu a gabinete presidencial para essa tropa de ‘nouveau riche’? A resposta é simples: o próprio presidente, aquele que afirmou na reunião ministerial de 22 de abril que seus adversários queriam a “nossa hemorroida, a nossa liberdade”. Sem explicar até agora o que uma tinha a ver com a outra... Generais como Santos Cruz recebem seus salários de fonte conhecida e descontam os impostos na fonte. A PF indaga como essas coisas funcionam com os blogueiros bolsonaristas.
Santos Cruz fora Secretário Nacional da Segurança Pública no governo de Michel Temer e um dos oficiais que participaram da articulação que levou Jair Bolsonaro ao poder. É criticado, por isso, pela oposição, que não lhe perdoa a adesão ao bolsonarismo. Diz que, ao contrário da maioria dos eleitores que se decepcionou com o governo, ele conhecia Bolsonaro e sabia o que esperar do colega. E se pergunta quais as ligações de Santos Cruz com o chamado “partido militar”, o grupo que resolveu trocar a política do Exército pela opção de tentar fazer política no Exército.
Apesar das desconfianças de alguns, o ex-ministro-chefe da secretaria de Governo é cortejado por partidos políticos e chegou a ser convidado pelo governador João Doria para entrar no PSDB. O general se diz um homem de direita. E, ao lado de colegas, apresentava um argumento para justificar sua passagem pela política: o combate à corrupção. Mas pensava que um governo devia dialogar e ouvir a todos, independentemente de partidos.
Sabia da limitação dos militares para assumir funções civis para as quais não foram treinados. Aos amigos, dizia: "Cabos sabem fazer muito bem as coisas militares que se esperam dos cabos, assim como os sargentos, os tenentes e os generais. É uma ilusão pensar que podemos cuidar de tudo." No governo, teve a Secretaria de Comunicação – e suas verbas publicitárias – subordinada à sua pasta. Estudou como a publicidade oficial funcionava, quais contratos mantinha e com quem. E logo barrou um de R$ 39 milhões para divulgar a viagem de Bolsonaro a Davos. Justificou-se com o fato de que a imprensa já ia cobrir a presença do presidente no evento.
Também não aceitou direcionar a verba de publicidade a aliados e amigos, defendendo critérios técnicos como audiência, tiragem, abrangência e público alvo. Não demorou a entrar na mira da turma de Carlos Bolsonaro, o filho do presidente que é citado 43 vezes no inquérito que apura a existência de uma organização criminosa por trás dos atos em Brasília que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Santos Cruz não entendia por que um contrato de R$ 40 milhões era assinado com uma agência se a execução dele não passava de R$ 12 milhões.
Também não entendia por que o governo pretendia gastar tanto em publicidade com a reforma da Previdência, se era um tema já explorado pelo governo de Michel Temer e se havia apoio à medida ainda maior na atual Legislatura. Dizia então que a sociedade toda já sabia do que se tratava. E, ainda que pensasse que, ser filho de presidente, não é uma função pública, nada pôde contra as intrigas dos parvenus em busca de uma janelinha no Planalto.
Lembrava que a promessa do governo Bolsonaro era “fazer diferente” de seus antecessores. E pensava na Revolução dos Bichos, de quando Bola de Neve escreveu os princípios do animalismo – os sete mandamentos – na parede da granja. Naquele dia, todos partiram para colher o feno e quando voltaram à noite perceberam que o leite das vacas havia sumido.
Acabou demitido antes de apresentar seu plano de comunicação governamental no qual pretendia defender que a “comunicação do governo não pode ser mercadológica, não pode ser ideológica e deve transmitir informações, em vez de mera propaganda de governo ou de pessoas”. Por fim, o general pensava que a política do Planalto não podia concorrer com outros veículos de comunicação.
Após deixar o governo, Santos Cruz permaneceu quase um ano comedido ao falar do governo e poupava o presidente. Foi assim mesmo depois da demissão de Sérgio Moro e das afirmações do ministro da Justiça de que Bolsonaro queria usar a PF para favorecer o filho denunciado por desviar dinheiro público. O que o fez mudar de postura e passar a criticar abertamente o presidente foi a decisão de Bolsonaro comparecer a uma manifestação em frente ao QG do Exército, que pedia o fechamento do Congresso e do STF.
Decidiu falar no momento em que viu colegas da reserva próximos de Bolsonaro defenderem uma extravagância: o papel de Poder Moderador das Forças Armadas diante de conflitos institucionais. Era a tese do golpe de Estado que pretendia fingir legalidade onde só havia a intenção de se praticar um crime contra a Constituição. Ela levou o general a escrever um artigo publicado no Estadão. Seu primeiro passo na mudança de tom em relação ao governo.
Santos Cruz pressentiu a tentativa de se envolver o Exército em uma aventura, assim como o brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do Superior Tribunal Militar. Sabia que a grande maioria dos colegas não se envolveria na discussão, mas acreditava ser necessário enfrentar os extremistas que dominavam a cena. E se justificou para os amigos: “Há três pragas hoje no Brasil: a corrupção, o coronavírus e o fanatismo”. No dia 12 de novembro, foi mais longe ao escrever no Twitter: “Cansado do Show. O Brasil não é um País de maricas. É tolerante demais com a desigualdade social, corrupção, privilégios. Votou contra extremismos e corrupção. Votou por equilíbrio e união. Precisa de seriedade e não de show, espetáculo, embuste, fanfarronice e desrespeito."
Um dia antes, havia desabafado contra Bolsonaro, que comemorara a morte de um brasileiro no que pensava ser o fracasso da coronavac, a vacina desenvolvida no Instituto Butantã em parceria com a Sinovac chinesa. “Ganhou de quem? Vacina, qualquer que seja, é saúde pública. É para a população. Não é assunto particular. O trato tem ser técnico e dentro da lei. Fora disso é irresponsabilidade, falta de noção mínima das obrigações, desrespeito pela saúde dos cidadãos. Vergonha! Sem classificação!"
Recentemente, para um político que o procurou pedindo que assinasse uma ficha de filiação partidária, o general explicou a recusa, afirmando que, assim, acredita que sua voz será ouvida por mais gente e não só pelos filiados daquele partido. Embora comemore a presença de militares na política como mais uma opção para o eleitor, Santos Cruz acredita que a ilusão de achar que eles são a solução para a gestão pública é muita vezes propagada pela imprensa. Militares são competentes para as coisas militares; as demais dependeriam da capacidade de cada um. Esse seria o caso do general Pazuello.
Não é de um intendente, como Pazuello, que o País precisaria à frente do Ministério da Saúde, mas de alguém que entenda de políticas públicas. O intendente especialista em logística não consegue comprar seringas e agulhas para vacinar a população. E se submete a um chefe que não o deixa comprar vacinas. Ou como afirmou Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Anvisa: "Propor vacinação só em março e alcançar no máximo um terço da população em 2021 é um crime". Militar da ativa, Pazuello ajudaria a vincular o Exército ao governo que comete esse crime. Mas antes de responsabilizar o general, Santos Cruz sabe que é preciso olhar para o Planalto. É lá que está o presidente da República, que devia sentar na cabeceira da mesa de reuniões e definir o que se deve fazer na maior crise sanitária do século, em vez de se omitir, brigar por causa de vacina e chamar o povo de maricas.
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