Brasileiros vão à China buscar terapia polêmica

Não há prova científica de que injeção de célula-tronco funcione, mas paciente relata melhora do quadro clínico

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AVANÇO INEXPLICADO -

Clara, filha de Carlos Pereira e Aline, passou a se alimentar melhor após ir à China

"Você não tem nenhuma pessoa com deficiência na família, tem?" Essa é a primeira pergunta que o recifense Carlos Edmar Pereira faz à reportagem do Estado antes de concordar em dar entrevista. Ele não quer mais ser criticado pela decisão que tomou cerca de um ano atrás, de levar sua filha numa viagem de 27 horas de avião para receber injeções de células-tronco na China.

A pequena Clara, de 2 anos, é portadora de paralisia cerebral. Até antes da viagem, ela não tinha força muscular, não conseguia engolir comidas sólidas e tinha dificuldade até para beber água. Agora, após o tratamento, fica sentada sozinha, mantém a cabeça em pé e come tudo que colocarem no prato.

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Pereira atribui a melhora ao efeito terapêutico das células-tronco. Mas os cientistas duvidam. Trata-se de um caso emblemático. Contrariando todas as recomendações de médicos e pesquisadores acadêmicos, cada vez mais pacientes brasileiros viajam para a China e outros países distantes em busca de tratamentos para doenças terminais e debilitantes que a medicina "ocidental" ainda não é capaz de curar.

Pagam milhares de dólares para receber injeções de células-tronco na veia, na medula espinhal ou até no cérebro, apesar de não haver nenhuma prova científica de que isso possa ter efeito clínico verdadeiro.

O país tradicionalmente conhecido por suas ervas medicinais e acupuntura virou uma Meca extraoficial da biotecnologia e da terapia celular. O prontuário de doenças e condições tratadas é surpreendentemente extenso: paralisia cerebral, esclerose múltipla, esclerose lateral amiotrófica, Parkinson, Alzheimer, isquemias, distrofias musculares, lesões medulares (paraplegia e tetraplegia), acidente vascular cerebral, hipoplasia do nervo ótico, diabete, pé diabético, epilepsia e até autismo. Motivo de esperança para os pacientes e de ceticismo para os cientistas.

Os sites das clínicas e hospitais que oferecem as células - são mais de 200 na China, segundo um levantamento recente feito por uma equipe canadense - são enfeitados com dezenas de relatos de pacientes que se dizem satisfeitos com a terapia. Muitos relatam melhoras sutis: um pouco mais de percepção nas pernas, um pouco mais de movimento nos dedos, um pouco mais de força no pescoço ou uma simples sensação de bem-estar. Mas há casos aparentemente espetaculares, como o de Clara, que deixam os cientistas ao mesmo tempo curiosos e desconfiados.

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Pereira conta que sua filha melhorou do dia para a noite. "Depois da segunda injeção de células-tronco, tentamos dar um pouco de arroz e ela comeu. Foi uma surpresa. Aí demos um franguinho desfiado e ela também comeu. Agora já come de tudo: arroz, feijão, cuscuz, carne, macarrão." O tratamento foi em abril de 2009. Antes disso, a comida precisava ser toda triturada num liquidificador, porque Clara não tinha força nem coordenação necessária para mastigar, engolir e respirar ao mesmo tempo.

Na avaliação de pesquisadores consultados pelo Estado, esse tipo de efeito imediato não tem base científica. "É impossível", resume a geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo (USP). "Nenhum tratamento desse tipo surte efeito no dia seguinte. Isso não existe." Segundo ela, seriam necessárias várias semanas ou até meses para que as células pudessem chegar aos tecidos danificados, fixar-se no organismo e - quem sabe - começar a surtir algum efeito.

O material distribuído pelas clínicas chinesas diz que não há garantia de resultados clínicos e que os efeitos terapêuticos das células levam cerca de seis meses para aparecer. Quase todos os relatos na internet, porém, são de pacientes que estão internados ou acabaram de concluir o tratamento. "Posso dizer com certeza que os efeitos levariam meses para aparecer; não dias ou horas", confirma a especialista Joanne Kurtzberg, do Programa de Células-Tronco e Medicina Regenerativa da Universidade Duke, nos Estados Unidos. "Qualquer melhoria imediata que o paciente relate definitivamente não é resultado das células-tronco."

Joanne coordena dois estudos clínicos pediátricos com células-tronco - um deles específico para casos de paralisia cerebral. "Há sinais positivos de que a terapia pode ser benéfica, mas é prematuro dizer que ela funciona", avalia. A pediatra prefere não dar detalhes sobre o procedimento, mas diz que é diferente do que é feito na China. "Usamos somente células autólogas, do sangue de cordão dos próprios pacientes", diz.

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Como são poucas as pessoas que têm esse sangue congelado ao nascer, as clínicas chinesas utilizam células de doadores, obtidas de bancos públicos de cordão. Sem um tratamento prévio de imunossupressão (feito com quimioterapia), porém, essas células de doador são destruídas pelo sistema imunológico rapidamente, diz Joanne. "As células morrem em questão de horas. Estão pagando por um tratamento que não trará efeito nenhum."

Os pesquisadores não acusam os pacientes de inventar histórias nem condenam a opção de buscar uma terapia controversa, mas acreditam que a maior parte das melhorias relatadas não seja resultado clínico verdadeiro. Poderia ser efeito placebo passageiro ou de outras terapias oferecidas com as injeções (como fisioterapia), de medicamentos injetados com as células ou reflexo de uma progressão natural do paciente.

Como as clínicas não seguem os protocolos básicos de pesquisa clínica nem publicam seus resultados em revistas científicas reconhecidas, simplesmente não há como saber. As clínicas não têm como provar que seus resultados são verdadeiros, e os críticos não têm como provar que eles são falsos. Fica tudo na boca dos pacientes - cujas experiências estão sujeitas a muitas subjetividades.

"Os relatos dos pacientes têm o seu valor, mas não servem como evidência científica", diz o pesquisador Júlio Voltarelli, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. "Eles não mostram os relatos dos que não tiveram benefício nenhum, que certamente são a maioria. Acho que é picaretagem."

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O tratamento de Clara foi feito pela empresa Beike Biotech. Desde que iniciou a campanha para arrecadar doações para a filha, em 2008, Pereira foi procurado por tantas famílias e fez tantos contatos que, ao voltar, foi nomeado "representante de pacientes da Beike para o Brasil e Portugal". Ele diz que é pago para traduzir materiais da empresa do inglês para português, mas não para se relacionar com pacientes. "É um trabalho que faço por prazer, porque já passei por isso e sei o quanto é difícil", diz. "É uma forma de agradecer aos que ajudaram minha filha, ajudando outras famílias a ter o mesmo tratamento."

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