‘É na Rua do Valongo que se encontra, no Rio de Janeiro, o mercado de negros, verdadeiro entreposto onde são guardados os escravos chegados da África. Às vezes, pertencem a diversos proprietários e são diferenciados pela cor do pedaço de pano ou sarja que os envolve, ou pela forma de um chumaço de cabelo na cabeça inteiramente raspada (...) Nesse mercado, convertido às vezes em salão de baile por licença do patrão, ouvem-se urros ritmados dos negros girando sobre si próprios e batendo o compasso com as mãos; essa espécie de dança é semelhante a dos índios do Brasil.”
Este é um trecho da descrição de Debret, Jean-Baptiste Debret, de sua Prancha 23,
Mercado da Rua do Valongo
, produzida na primeira metade do século 19, durante o tempo em que morou no Brasil. A obra faz parte da rica coleção Brasiliana do
, localizado na cidade do Rio de Janeiro: são cerca de 1.700 imagens que trazem à tona séculos de histórias sobre o País, narradas por estrangeiros como o francês Debret – dele, o museu tem 451 aquarelas, 58 desenhos e 29 gravuras.
Trago Debret a esta coluna não para falar especialmente de suas tão interessantes obras de arte (um dia ainda farei isso), mas porque talvez seja ele uma das maiores expressões do viajante estrangeiro que para cá veio e aqui se pôs a escrever e/ou pintar sobre o cotidiano, os costumes e as diferenças que encontrou, a partir, claro, de seus pontos de vista e dentro de seus contextos. E digo isso para evitar qualquer anacronismo histórico.
Andei analisando algumas de suas pranchas no último semestre. Me chama a atenção, nos museus por onde passo, observar como a realidade era compreendida, construída e difundida em determinada época.
Viajantes de outros tempos tinham, entre suas muitas funções, a tarefa de relatar. Tratava-se de coisa bastante séria às vezes: o que escreviam podia determinar grandes ou pequenas ações. Podia justificar a paz ou a guerra, a aliança ou a exploração sem limites.
Eles escreviam (ou desenhavam) sobre seus dias de viagem, sobre os infortúnios do caminho, sobre o próprio caminho – cartografia e viagens sempre andaram juntas –, sobre as conquistas, sobre o corpo, a alma e a prática do outro, aquele outro tão “exótico” com quem frequentemente cruzavam.
E é sobre esse outro que fala Debret na descrição do início desta coluna. Particularmente sobre o outro africano, que é arrancado de seu continente para ser vendido no mercado de escravos do Cais do Valongo, na zona portuária do Rio, e que vai ocupando cada vez mais as ruas da cidade e o interior cafeicultor do Estado. Suas profissões, seus cantos e danças, os castigos sofridos, os cortejos fúnebres, a religião: tudo isso está descrito nas linhas e cores de Debret. E também nas de outros tantos viajantes, escritores, artistas e fotógrafos interessados, por muitos motivos, nas culturas africanas e de matriz afro-brasileira.
Recentemente, a revista
National Geographic publicou um editorial em que reconhece seu passado racista
. Nele, Susan Goldberg – primeira mulher e primeira judia a dirigir a publicação lançada em 1888 – admite que, ao longo dos anos, fotos, legendas e textos sobre pessoas não brancas publicados foram, em geral, preconceituosos e ajudaram a propagar visões estereotipadas sobre povos cujas características fugiam aos padrões ocidentais brancos.
Fiquei pensando se este não era o momento de escrever, eu também, sobre o anacronismo que nós, viajantes, ainda podemos expor em nossos relatos – seja quais forem os motivos que eles tenham hoje em dia. Aquele anacronismo que não deixa ir antigos preconceitos – e junto com eles a arrepiante palavra “exótico”.
Em tempo: relatos estrangeiros passados a limpo, a próxima coluna se dedicará a trazer os lugares onde a história negra foi/é escrita (e desenhada) por quem a viveu – e vive.
*Envie sua pergunta para viagem.estado@estadao.com.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.