Cadeira de barbeiro

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Por Redação
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Seu Chiquinho Villano tem 92 anos e há 80 é barbeiro no mesmo lugar, na Rua França Pinto, hoje no 617. A Vila Mariana passou e ele ficou, rejuvenescendo-se todos os dias, já de tesoura em punho às 7h de cada dia. Recebe os clientes com a calma de fígaro antigo, a conversa pausada e bem-humorada. Ouvi suas histórias, suas anedotas de barbearia, com a pudica recomendação de não publicá-las.Já trocou de cadeira umas seis vezes, sempre na fábrica do velho Ferrante, que conheceu, outra instituição das barbearias brasileiras, uma fábrica do Cambuci. Sobre a bancada, um velho rádio está permanentemente sintonizado em emissora que transmite música clássica. Lembra com saudade da velha Rádio Gazeta, a emissora de música erudita, que tinha sua própria orquestra sinfônica.Cheguei até seu Chiquinho por meio do Dr. Tito Costa, seu admirador. Cadeira de barbearia já foi o mote de programa da Rádio Tupi, nos anos 1950, "Cadeira de Barbeiro", com Aloísio Silva Araújo, como barbeiro, e Manuel da Nóbrega, como cliente. Ali se metia a tesoura na vida de todo mundo, sobretudo nas manhas dos políticos. A cadeira de barbeiro é, neste País, uma das mais poderosas instituições de formação da opinião pública: uns 60 milhões de homens maduros nela se sentam ao menos uma vez por mês e ali expressam livremente o que pensam sobre todos os assuntos. Quando cheguei, metiam o pau na Câmara paulistana pelo aumento do IPTU. Cadeira de barbeiro é a única e verdadeira tribuna livre do povo, único lugar da crítica social e política aberta. Seu Chiquinho teve clientes famosos. Foi barbeiro de Prestes Maia, duas vezes prefeito de São Paulo, a quem admirava, porque não usava carro oficial, usava o bonde. Recusou democraticamente aos ricos Matarazzos, originários da mesma terra de seu pai, Castellabate, na italiana província de Salerno, a permissão para que construíssem um portão particular no Cemitério da Consolação, na Rua Mato Grosso.Na revolução de julho de 1924, a Vila Mariana foi cenário de combates e bombardeios, muita gente morreu e muita gente fugiu. De carroça, seu pai, Affonso Villano, levou a família, a mulher, Philomena, e as crianças, para a casa do tio Gustavo, um parente que tinha armazém de secos e molhados na Barra Funda. E lá ficaram refugiados durante o mês dos combates nas ruas de São Paulo, dormindo no chão. Os meninos voltaram a pé para casa, na Rua Humberto I, a mãe na carroça, com criança pequena. Caminharam a manhã inteira. A criançada acabaria se divertindo com os resquícios da guerra: arrancava das paredes as balas incrustadas, para guardá-las como lembrança. A cultura da cadeira de barbeiro é a rica cultura do cotidiano, da memória sem escrita, da vida sem arquivo nem papel, do que não importa, importando muito.

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