O carnaval de 2023 será marcado por histórias que a História não conta. Escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo apresentarão enredos dispostos a reverter apagamentos históricos, valorizar a ancestralidade e mostrar o protagonismo de negros, mulheres e indígenas em diferentes momentos. Com temas que vão da primeira negra a publicar um livro no Brasil ao samurai africano que se tornou herói no Japão, os desfiles ocorrem a partir desta sexta-feira, 17, na capital paulista, e domingo, 19, na carioca.
Para pesquisadores, as escolas de samba vivem um momento de volta às raízes e de valorização da origem negra, marcado pela vitória da Grande Rio no carnaval passado, com um enredo sobre exu — entidade ligada a religiões de matriz africana e estigmatizada por décadas. E esse retorno dialoga com um contexto sociocultural de questionamento de apagamentos históricos e de força das redes sociais, nas quais trechos de desfiles viralizam e atingem um público para além dos expectadores tradicionais.
Um exemplo é o enredo da Mocidade Alegre, em São Paulo, sobre Yasuke, considerado o primeiro samurai negro e cuja existência é pouco conhecida fora do Japão. “A gente conta a trajetória heroica de um homem que chegou ao Japão escravizado e se tornou um membro da mais alta corte”, resume o carnavalesco da escola, Jorge Silveira, que pensou no potencial da história para o carnaval assim que a conheceu.
“A escola não conhecia, mas se identifica com o personagem. Percebeu que, embora tenha acontecido 500 anos atrás, tem muita semelhança com lutas e batalhas de hoje”, relata. “Muitos heróis negros foram negligenciados na história e revelados (para o grande público) por escolas de samba, como Chico Rei. Xica da Silva e Zumbi (todos retratados pela Salgueiro nos anos 1960). Eram esquecidos pelos livros de história e foram enaltecidos pelas escolas de samba.”
A partir da trajetória do guerreiro africano do século 16, a escola pretende fomentar discussões sobre as barreiras enfrentadas até hoje pela população negra. “Terá um ‘link’ dessa história com a atualidade, dizendo que esse personagem renasce toda vez que um jovem preto de periferia precisa vencer o preconceito e trabalhar por seu espaço de direito, quando precisa se vestir da armadura de um samurai.”
Ao fim do desfile, um carro alegórico trará os Yasukes brasileiros das próximas gerações, homens negros brasileiros de destaque em diferentes áreas, como o músico Rappin’ Hood, a cantora Linn da Quebrada e a drag queen Silvetty Montilla. “Tem uma mensagem social importante”, afirma Silveira.
Também em São Paulo, a Rosas de Ouro apresentará o enredo “Kindala! Que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome”, com diferentes momentos histórico de protagonismo da população negra, principalmente na contemporaneidade. “Resolvemos nos engajar nessa luta, sendo um aliado do povo negro”, diz o carnavalesco Paulo Menezes.
“A gente passa pelos quilombos, pelas grandes revoltas, por revoltas que não são conhecidas também”, aponta. O desfile irá destacar a identidade negra de personalidades históricas que passaram por um processo de embranquecimento quando retratadas, como Machado de Assis e Aleijadinho. “Em nosso desfile resgataremos a verdadeira cor deles.”
Menezes faz uma comparação que o termo “escola de samba” também explicita o papel das agremiações na difusão do conhecimento. “Elas ensinam a pensar, levam a refletir. Vários assuntos se tornam mais conhecidos após desfiles em escolas de samba. Vão influenciando, plantando uma semente das pessoas, e a gente espera que essas sementes germinem e deem bons frutos.”
Uma das histórias pouco conhecidas que serão narradas no sambódromo é a de Rosa Egipcíaca, primeira mulher negra a escrever um livro do Brasil (Sagrada Teologia do Amor de Deus Luz Brilhante das Almas Peregrinas), chegada ao País em 1725 para ser escravizada e que se tornou uma santa popular em Minas Gerais. A ideia de retratá-la no carnaval deste ano foi do carnavalesco Tarcísio Zanon, da Viradouro, ao encontrar a biografia da autora em um sebo.
“A Rosa é uma personagem desconhecida do grande público. Um dia encontrei esse livro (a biografia da autora, escrita pelo historiador Luiz Mott: Rosa Egipcíaca: uma Santa Africana no Brasil) e me encantei com o título. É uma personagem da história do Brasil importantíssima, mas que não tinha essa invisibilidade”, conta o carnavalesco.
Para Zanon, além de dar protagonismo a uma história pouco conhecida, o desfile fomentará discussões sobre a realidade atual e poderá inspirar o público. “Muitas mulheres, principalmente as pretas, vão se ver na Rosa”, diz. A ideia também é mostrar a continuidade do legado da autora na trajetória de intelectuais e artistas negras contemporâneas, como a escritora Helena Theodoro, que estarão em um carro alegórico. “São parte dessa roseira que não para de brotar, mesmo em solo árido.”
‘Quando abordam esses temas, inevitavelmente fazem uma revisão histórica’
O sociólogo, escritor, sambista e especialista em carnaval Tadeu Kaçula ressalta que as escolas de samba falam com o grande público, ajudando a aprofundar debates raciais, de gênero, sociais e econômicos. “Quando abordam esses temas, inevitavelmente fazem uma revisão histórica.”
Para ele, as escolas de samba se afastaram temporariamente desse lugar a partir dos anos 1990, em parte por questões financeiras e os recentes descenso de agremiações tradicionais em São Paulo, mas que a situação tem se revertido principalmente nesta década. “Rio e São Paulo trabalham em sintonia nesse sentido, com um pontapé do Rio, que tem uma estrutura econômica que depende menos de enredos patrocinados”, afirma.
Além disso, o meio virtual tem ajudado na difusão do conteúdo dos desfiles para além do expectador de televisão e do sambódromo. ”A internet hoje contribui para o debate. E as redes sociais também têm feito um papel importante de popularizar e democratizar o acesso aos desfiles.”
Outras escolas dos grupos especiais também abordarão enredos de valorização da ancestralidade, do protagonismo feminino e da história dos povos originários. Em São Paulo, a Tom Maior irá desfilar “Um culto às mães pretas ancestrais” e a Barroca Zona Sul abordará a história dos indígenas guaicurus, do centro-oeste brasileiro. No Rio, a Mocidade de Padre Miguel vai falar sobre o artesão pernambucano Mestre Vitalino e a Beija-Flor vai fazer um “grito dos excluídos” sobre as verdadeiras histórias da Independência do Brasil.
Veja abaixo a programação dos desfiles do grupo especial de São Paulo:
17 de fevereiro (sexta-feira)
20h30 – Desfile das velhas-guardas de São Paulo
23h15 – Independente Tricolor
00h20 – Acadêmicos do Tatuapé
01h25 – Barroca Zona Sul
02h30 – Unidos de Vila Maria
03h35 – Rosas de Ouro
04h40 – Tom Maior
05h45 – Gaviões da Fiel
18 de fevereiro (sábado)
20h30 – Afoxé Filhos da Coroa de Dadá
22h30 – Estrela do Terceiro Milênio
23h35 – Acadêmicos do Tucuruvi
00h40 – Mancha Verde
01h45 – Império de Casa Verde
02h50 – Mocidade Alegre
03h55 – Águia de Ouro
05h00 – Dragões da Real
Veja abaixo a programação dos desfiles do grupo especial do Rio:
19 de fevereiro (domingo)
22h - Império Serrano
23h - Grande Rio
0h - Mocidade Independente de Padre Miguel
1h - Unidos da Tijuca
2h - Salgueiro
3h - Mangueira
20 de fevereiro (segunda-feira)
22h - Paraíso do Tuiuti
23h - Portela
0h - Vila Isabel
1h - Imperatriz Leopoldinense
2h - Beija-Flor
3h - Viradouro
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