Depois que o soldador João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, foi espancado e morto por dois seguranças de uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre, em novembro de 2020, a multinacional foi alvo de protestos em suas lojas, repercussão negativa internacional e ação na Justiça. A tragédia fez com que a empresa decidisse acabar com a terceirização na área de segurança e contratasse um diretor negro para conduzir outras mudanças internas, como o uso de câmeras corporais no uniforme dos vigilantes. Consultorias de diversidade racial observam avanços nas medidas, mas destacam a necessidade de estratégias permanentes de inclusão.
Em junho deste ano, o Carrefour assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal gaúcho e as ONGs Educafro e Centro Santo Dias de Direitos Humanos para promover ações de valorização da diversidade. Interna e externamente. Nos mercados, o Plano Antirracista vai desde protocolos de segurança, canal de denúncias, treinamentos para dirigentes e trabalhadores sobre diversidade racial até compromissos em relação à cadeia ou rede de fornecedores.
Um dos líderes do processo é o baiano Claudionor Alves, homem negro de 55 anos nascido em Amargosa, distante 240 quilômetros de Salvador. Quando chegou a São Paulo, com 21 anos e um diploma da 4ª série do Ensino Fundamental, o baiano sonhava ser motorista ou vigilante. Como diretor de Segurança Corporativa e Prevenção de Perdas e Riscos há sete meses, ele comanda diretamente seis pessoas, entre elas, um negro e uma mulher.
Os desafios de Alves vão além do "crachá pesado" e são exemplificados por experiências na vida pessoal. Morador de um condomínio de luxo em em Alphaville, na Grande São Paulo, o executivo conta estar na portaria, à espera de delivery dias atrás. Um casal de moradores cumprimentou e disse "bom trabalho". Alves agradeceu, mas ficou encafifado: por que o casal acha que ele estava trabalhando e não é um morador? Ele afirma que a razão é o fato de ser negro.
"É inegável que a gente passe por situações de racismo. Elas são frequentes. O racismo estrutural é latente. Procurei usar a inteligência para transformar as dificuldades como degrau para patamares melhores. Mas tenho centenas de colegas e poucos ocupam cadeiras como essa. Mesmo nesse nível, ainda passamos por situação de preconceito", diz.
Além da contratação de um profissional negro para dirigir a área de Segurança, a empresa decidiu internalizar a função de agente de prevenção. Hoje, as 100 lojas chamadas "hiper" no País não possuem mais funcionários terceirizados, de acordo com a empresa. Nas menores, a internalização alcançou 20% do total.
A segurança patrimonial, chamada segurança externa ou vigilância, continua sendo feita por terceirizadas. Por lei, esse serviço precisa ser realizado por empresas que possuam chancela da Polícia Federal e não pode ser internalizado. Vale um parêntese: os responsáveis pelo assassinato de Beto Freitas eram contratados pelo Grupo Vector, tercerizada. A empresa diz ter melhorado o treinamento e processo seletivo, além de criar um canal de denúncias.
Foram contratados cerca de 600 funcionários em todo o Brasil. Desse total, 64% são negros e 35% são mulheres - a meta é ter a metade feminina. A empresa informa que o mercado, como um todo, ainda tem maior porcentual de homens.
Outra ação da empresa é o uso de câmeras corporais, aquelas que ficam presas ao uniforme e gravam o turno de trabalho sem que seu usuário possa desligá-la. Um projeto-piloto testa as mudanças em quatro lojas de Porto Alegre antes da implantação no Brasil todo. O equipamento já vem sendo utilizado pela Polícia Militar de São Paulo desde o mês de maio. "Nosso principal desafio é importar as câmeras. Nossa meta é adotá-las em todas as lojas do Brasil até o final do ano", afirma Jérôme Mairet, diretor de gestão de Riscos do Grupo Carrefour Brasil. "As câmeras trouxeram muita segurança nos testes realizados e garantem que o agente também dê sua visão", completa.
Inclusão
A pedido do Estadão, consultores de diversidade e inclusão avaliaram as medidas da empresa que estão disponíveis no site "Não vamos esquecer" e que consolidam o que o Carrefour tem feito para combater o racismo. De maneira geral, eles consideram as ações positivas e esperam que elas se mantenham a longo prazo, sem perder o impulso inicial.
A consultora Letícia Rodrigues destaca que a divulgação das informações já é um avanço. "A transparência e a atualização das informações, com a visibilidade dos compromissos e check-list do que já foi feito e aquilo que está em andamento, é algo positivo", diz a sócia-fundadora da consultoria Tree Diversidade.
Por outro lado, Letícia alerta sobre os cuidados que devem ser tomados no treinamento de lideranças. A empresa informa que 54% das lideranças no Brasil são negras. "Quem está tomando as decisões também tem de ter uma postura antirracista para que esse comportamento chegue até a ponta. Lembrando que é preciso trabalhar todas as lideranças, negras e não negras", avalia. De acordo com a empresa, foram realizadas 34 sessões de treinamentos sobre diversidade racial desde janeiro.
Deives Rezende Filho, ex-ombudsman do Itaú e CEO da consultoria Condurú, sentiu falta de mais informações sobre as ações para a inclusão efetiva, após o aumento da diversidade no quadro de funcionários. O especialista usa uma frase que se tornou um paradigma nas políticas afirmativas: "Diversidade é chamar para a festa, inclusão é convidar para dançar". "Não é difícil alcançar as metas de diversidade. E depois? Como incluir e fazer com que as pessoas evoluam?", afirma.
Especialistas afirmam que, além de facilitar a entrada de funcionários, as empresas devem criar formas de acolhimento, integração e planejamento de carreira. Essa é a inclusão de fato.
Nesse contexto, o especialista sugere a figura do mentor, que não está presente nas divulgações da empresa. "Seria interessante a presença de uma pessoa experiente que segure na mão do novo funcionário e fale sobre a cultura da empresa. O mentor não deve ser o gestor direto, pode ser alguém de outra área", aconselha.
Os consultores são unânimes ao apontar que um dos grandes desafios é realizar o acompanhamento das medidas a longo prazo – eles avaliam que esse tipo de trabalho leva, no mínimo, um ano. "A implantação de um programa de diversidade não é uma corrida de 100 metros. É uma maratona", diz Deives.
"Algumas medidas estão relacionadas à cultura da empresa, como a tolerância zero à discriminação. Por isso, elas precisam ser medidas a longo prazo. Uma coisa é imprimir uma agenda, outra é gerir a agenda. As medidas precisam ser mantidas e acompanhadas de forma independente e crítica", opina Ana Bavon, CEO da consultoria B4People Cultura Inclusiva.
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