Uma rajada de tiros no meio da madrugada acordou boa parte da casa da missionária, cantora gospel e deputada federal Flordelis dos Santos, de 59 anos, na Rua Cruzeiro, onde normalmente dormiam mais de 30 pessoas. Habituados a descansar sob o som de confrontos nas redondezas de Pendotiba, bairro de Niterói, outros moradores só foram despertar mesmo com a gritaria e o corre-corre que tomaram conta do local na sequência.
Estirado no chão da garagem e ferido à bala, estava o pastor Anderson do Carmo de Souza, de 42 anos, marido, administrador da casa e principal mentor das carreiras artística e política de Flordelis. De barriga para cima e com o braço direito sobre a cabeça, o corpo vestia cueca e mais nada. Eram 3h30 do dia 16 de junho de 2019.
O casal que ganhou notoriedade por ter criado 55 filhos, a maioria adotivos, havia chegado há poucos minutos de uma noite de diversão. Flordelis subira direto para o quarto, onde ficou conversando com um neto, enquanto Anderson ficou de trocar os carros na garagem. Só teve tempo de tirar a roupa no closet quando foi surpreendido pelo atirador.
Estranhamente, o casal de golden retriever, Lelis e Niel, não latiu naquela noite. Batizados com os apelidos de Flordelis e Anderson, os animais costumavam fazer barulho ao avistar pessoas desconhecidas. Na casa, ninguém diz ter visto qualquer movimentação estranha no terreno, embora tenham encontrado o portão dos fundos aberto.
Um dos moradores tentou chamar a ambulância mas, com a voz chorosa e nervoso, não conseguia passar informações sobre o estado clínico de Anderson. Filho biológico da missionária e enteado da vítima, Flávio dos Santos Rodrigues, de 39 anos, foi quem assumiu a ligação.
Do outro lado da linha, o médico regulador do Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) fazia plantão extra naquele sábado para domingo. À polícia, ele relatou que Flávio estaria “muito calmo”, mas se recusou a verificar se Anderson ainda estava respirando: “Ele falou que não faria nenhum procedimento porque a vítima já estava em óbito”.
A ambulância foi acionada com a classificação “despurg avançado”, que significa prioridade máxima. Em meio àquela situação, outros filhos adotivos não quiseram esperar o resgate. Flávio ajudou a pôr Anderson em um carro e um grupo seguiu para o Hospital Niterói D’Or, a dez minutos de distância. Ainda assim não deu tempo.
Uma das primeiras crianças pegas pelo casal e hoje também pastor, Luan Santos, de 43 anos, recebeu autorização e foi levado por uma enfermeira até a sala da unidade onde estava o corpo do pai. Viu que havia marcas no tórax, braço, perna, mas decidiu parar de contar quando chegou a 14 perfurações. Menos da metade das 30 lesões constatadas depois pelo laudo necroscópico.
A perícia aponta que, na têmpora e nas costas, Anderson apresentava zonas de tatuagem - feridas características de tiro à queima-roupa. Também foram desferidos disparos na região da genitália, um dos motivos que leva o Ministério Público do Rio (MPE-RJ) a concluir que, além de não possibilitada defesa, o assassino se valeu de meio cruel para executar a vítima.
Ao voltar para a casa dos pais adotivos, Luan comentou sobre a grande quantidade de tiros com os presentes. Entretanto, Flávio teria interrompido: “Impossível ser 14. Foram sete”.
Nem o argumento de que ele mesmo vira o corpo e que, curiosamente, as feridas eram afiladas - pareciam até feitas por golpes de faca - demoveu o irmão adotivo, conta Luan. “É assim mesmo, porque é 9 milímetros. A bala é fina mesmo, mas é potente. Ela entra e sai.”
Mais tarde, uma pistola do mesmo calibre mencionado, modelo TPR9 da marca Bersa, com a numeração raspada no ferrolho e na face direita da armação, seria encontrada pela polícia no armário de Flávio. Junto com a arma, havia um acessório de mira óptica.
Na casa, os investigadores também se depararam com objetos queimados no quintal e cobertores com mancha de sangue. Os celulares da vítima e de Flávio, no entanto, nunca foram encontrados. Acusado de ser o executor do assassinato, ele seria preso durante o velório do padrasto, no dia seguinte, e hoje é réu no processo por homicídio qualificado.
Polícia Civil e promotoria acreditam, ainda, que ao menos outros oito integrantes da família tiveram participação na morte do pastor Anderson, seja ajudando a orquestrar o plano ou a dificultar as investigações. Entre os acusados, só a pessoa apontada como a mandante da ação segue em liberdade: a própria Flordelis, beneficiada pela imunidade parlamentar. Ela alega inocência.
O Estadão teve acesso a relatório final da Polícia Civil, duas denúncias oferecidas pela promotoria, além de depoimentos juntados aos autos do processo e conta nesta reportagem especial o passo a passo da investigação e detalhes do crime.
A história narrada nos documentos contraria o histórico de boa pastora da deputada federal e sugere uma trama nada cristã, que envolve disputa por dinheiro, interesses políticos e até suspeitas de abuso sexual.
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