Criada em 1928 para ser a ‘Polícia das Estradas’, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) tem tido sua atuação questionada no período recente. Neste mês, a menina Heloísa Santos Silva, de três anos, morreu após ser baleada na cabeça quando estava no banco de trás do carro dos pais na região da Baixada Fluminense – os disparos partiram de uma viatura da corporação.
O episódio não é isolado. No ano passado, Genivaldo de Jesus, de 38 anos, foi morto após ser trancado com gás no porta-malas de uma viatura em Umbaúba, Sergipe. Um dia antes, uma ação da PRF na Vila Cruzeiro (RJ), zona norte carioca, terminou com 22 mortos. Foi a 3ª ação policial mais letal da história do Estado. Em Varginha (MG), em 2021, foram 26 óbitos, também em ação envolvendo a corporação.
À frente das investigações do caso Heloísa, o procurador da República e coordenador do Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial, Eduardo Benones, afirmou ao Estadão que, embora relevante, o patrulhamento ostensivo das rodovias “saiu dos trilhos” nos últimos anos. “Claramente houve uma militarização, do ponto de vista das armas”, disse. “Nunca houve tanta ocorrência como nos últimos três anos.”
Para Benones, é preciso agir rápido diante do cenário atual. “A primeira resposta que deve ser dada rápida, que é prática, sistêmica e completa, é a adoção das câmeras corporais”, disse o procurador. Como mostrou o Estadão em maio, os agentes da PRF devem passar a usar câmeras nos uniformes a partir de abril de 2024. Atualmente, a corporação possui cerca de 13 mil policiais.
“Minha expectativa, enquanto coordenador do núcleo de controle externo (da atividade policial), é de muita mudança”, disse. O procurador afirma que, para além das câmeras, a 7.ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, da qual faz parte, também tem debatido possíveis melhorias nos protocolos de atuação da PRF – o núcleo aborda temas relacionados ao controle externo da atividade policial.
“A gente faz o que tem que fazer diante do caso concreto, para dar a resposta que tem que ser dada observando os limites constitucionais. Mas para que casos como esse (da Heloísa) não aconteçam mais, é preciso dar uma resposta mais ampla, uma resposta sistêmica. Uma resposta que encare o problema no Brasil todo”, afirmou Benones.
As mortes em ações da PRF, como mostrou o Estadão, dobraram entre 2018 e o ano passado: de 22 para 44, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública. A pasta afirma que houve esforço nos últimos meses para baixar as taxas de letalidade: são oito este ano. “Queremos e vamos alcançar que este número seja zero”, disse o ministro Flávio Dino no começo da semana. No total, foram 156 óbitos desde 2018.
As operações de combate à criminalidade da PRF praticamente triplicaram em dois anos, segundo relatório de gestão do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Foram de 3,3 mil, em 2020, para 9,7 mil, no último ano. Segundo o documento, as operações são, sobretudo, no Sul, Sudeste e Centro-Oeste”, descritas como “as principais áreas críticas de acidentalidade e de criminalidade do País”.
PRF não deu sinal de parada antes de atirar contra carro, disseram testemunhas
A Polícia Rodoviária Federal não deu sinal de parada antes de atirar contra o veículo em que estava a menina Heloísa, segundo depoimentos de testemunhas colhidos pelo MPF. A mãe da vítima foi ouvida nesta terça-feira, 19. O pai e a tia da menina já haviam prestado depoimento antes. Além deles, também estava no carro a irmã mais velha de Heloísa, de 8 anos.
“Os três depoimentos (de familiares) prestados até agora estão no mesmo sentido”, disse Benones. “Eles estavam passando pela via, não houve sinal para parada do veículo, de qualquer espécie – nem sonoro, nem luminoso –, e quando eles pararam no acostamento, o carro foi alvejado com tiros vindos da viatura da PRF.”
De acordo com o procurador, a família encostou o carro porque a viatura da polícia estava muito próxima, mas não houve tempo de a família se comunicar com os agentes. Os policiais dizem que decidiram abordar o veículo após constatar que a placa indicava que o carro era roubado. A família afirma que comprou o veículo recentemente e não sabia de qualquer irregularidade.
“O pai da vítima já depôs sobre isso e quem vendeu para ele também depôs”, disse. Benones afirma que o MPF apura a origem da informação de que o carro foi roubado, quando ocorreu, entre outras informações, a fim de entender exatamente o histórico do veículo. “A gente está correndo atrás junto ao Detran, porque essa restrição não constava no Detran.”
O procurador reitera que, ainda que o carro fosse roubado, os disparos contra a família não seriam justificados, uma vez que a família não apresentou resistência. O MPF requereu perícia nas armas de todos os três agentes que estavam na viatura, tanto as armas longas quanto as menores. Solicitou também a perícia do carro das vítimas e também de fragmentos de bala encontrados nos arredores.
Sumiço de balas é problema ‘gravíssimo’ em investigações com policiais, afirma procurador
Conforme o procurador, o único projétil encontrado até então foi o que estava alojado no corpo da menina Heloísa, mas a hipótese é que tenha havido ao menos dois disparos. “É um problema gravíssimo nas investigações que envolvem policiais. Procedimentos primários de preservação da cena do crime, ou do suposto crime, não são adotados. Isso acontece muito, o que dificulta sobremodo qualquer investigação.”
O MPF apura ainda o relato de que agentes da PRF teriam ido até o hospital onde a menina Heloísa estava internada após a ação. Segundo uma das testemunhas, 28 agentes teriam comparecido ao local. “Imagens das câmeras do hospital já nos foram enviadas. Imagino que elas vão nos dar uma dimensão exata dessa movimentação”, afirmou Benones. A ideia do procurador é ouvir os três policiais envolvidos nas próximas semanas, após todo o material coletado ser analisado.
A Justiça Federal no Rio de Janeiro negou nesta terça pedido apresentado pelo MPF para que os três policiais rodoviários federais envolvidos na morte da menina Heloísa fossem presos preventivamente pelo crime. Mas determinou que os agentes da PRF cumpram seis medidas cautelares, também solicitadas pela Procuradoria. “A gente está estudando e possivelmente vai recorrer”, afirmou Benones.
Em nota enviada ao Estadão nesta semana, a PRF afirmou que “a comoção social no País é justificada”, e acrescentou que “o volume de manifestações públicas sobre a atuação da PRF também indica o tamanho da instituição e comprova a tese de que a sociedade exige resultados cada vez mais precisos e profissionais”.
Ainda de acordo com a PRF, os episódios recentes servirão de base para que se aprimore a atuação da polícia. “As falhas, mesmo as mais duras, são ocasiões para aprimorar o que a PRF entrega à população brasileira: segurança pública. Dessa forma, estamos debruçados sobre trágicas ocorrências em que a instituição esteve envolvida, estudando formas de, juntos, impedir que episódios semelhantes se repitam”, diz a nota.
O Ministério da Justiça tem afirmado implementar mudanças na formação e na orientação dadas às equipes. Nessa segunda-feira, 18, Dino chamou a ação que resultou na morte de Heloísa de “absurdo” e disse que as normas da PRF preveem justamente o contrário. “Essas normas dizem que não é possível a um agente, diante da não parada de um veículo, disparar arma de fogo.”
Além do procedimento interno de investigação do governo e da investigação do MPF, a Corregedoria da PRF também apura a ida de agentes da corporação onde a criança estava internada, segundo relatado por parentes de Heloísa, e suspeita de tentativas de constranger a família. /COLABOROU MARCIO DOLZAN
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