O CEO do Tenda Atacado, Marcos Samaha, recebeu muitas mensagens de apoio no lançamento do seu livro O privilégio é branco – da negação ao racismo às práticas antirracistas. Mensagens de brancos e de pretos. “O protagonismo dessa luta tem de ser dos líderes negros, mas tenho lugar de fala como líder branco privilegiado, que assume essa condição de combate à ideologia da meritocracia e de apoio às ações afirmativas”, diz ele.
Por meio de 14 entrevistas com gestores, sob a condição de anonimato, o CEO identificou um espectro de visões sobre a questão racial que vai do negacionismo, da crença de que o racismo é algo do passado, ao compromisso com a equidade. O autor ressalta a normalização e legitimação de dinâmicas históricas, culturais, institucionais e interpessoais que dão vantagens à população branca, perpetuando desvantagens para a população negra.
Resultado da pesquisa de doutorado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, produzida entre 2018 e 2021, o volume preenche uma lacuna nas estantes de Administração de Empresas e Negócios ao desvendar as razões da baixa presença de líderes negros nas empresas. É uma radiografia sobre a maneira como o mundo corporativo trata a questão da inclusão racial no Brasil.
À frente de uma cadeia de 43 lojas que se tornaram referência no segmento conhecido como “atacarejo”, Samaha falou com o Estadão por meio de videoconferência de quase uma hora logo em seu primeiro dia de férias.
Em sua visão, a luta contra o racismo teve avanços, como a criação do movimento Mover, organização de empresas que estabelece metas para promover a equidade racial, e o avanço das cotas raciais no ensino superior, mas a estrada ainda é longa.
Não é comum um CEO branco abordar temas como racismo estrutural. Por que decidiu colocar o dedo nessa ferida?
Recebi muito apoio de líderes negros no lançamento do livro, o que me ajudou a superar meu próprio dilema relacionado ao meu lugar de fala na questão racial. Eles disseram ‘você tem seu lugar de fala como aliado e como líder branco’. Isso me tranquilizou.
Por que?
Não posso me apropriar de uma luta que não é a minha como homem branco privilegiado. O protagonismo dessa luta tem de ser dos líderes negros. Mas eles me legitimaram. O protagonismo não é meu; mas tenho lugar de fala como líder branco privilegiado, que assume essa condição e o combate à ideologia da meritocracia e as ações afirmativas como meio de gerar mudança real e efetiva. Os CEO brancos também me apoiaram.
Como começou o engajamento nesse movimento?
Minha primeira experiência objetiva com a questão racial foi enquanto atuava como executivo de uma multinacional americana (Walmart) que levava a sério a questão da inclusão e da diversidade. Isso por volta de 2005, quando o tema estava pouco em voga nas empresas no Brasil. Depois, na vida acadêmica, entrei em contato de forma mais profunda com a disciplina de diversidade e inclusão.
O que o senhor queria investigar com a pesquisa?
A pesquisa buscou conhecer o grau de conscientização entre líderes brancos e negros sobre o tema da equidade racial. Comecei as entrevistas em 2018, quando o tema não tinha a visibilidade midiática de hoje. A diversidade racial era a questão menos abordada pelas empresas. Tratei de fazer entrevistas confidenciais, de forma anônima. Isso deixa os líderes mais à vontade.
Qual foi o cenário que a pesquisa identificou?
Uma das coisas que a gente identifica é o espectro, que vai do negacionismo às práticas antirracistas. Uns diziam que era um tema do passado, que as pessoas já tinham oportunidades iguais e que o importante era a meritocracia. No extremo oposto, mas ainda de forma rara, alguns entendiam a gravidade da situação e já colocavam em prática algumas atividades que visavam a equidade.
Por que faltam estudos sobre o tema?
A falta de estudos é decorrência do racismo estrutural. Os pesquisadores nas universidades brasileiras e, em especial, na área de administração de empresas, são os doutorandos e pós-doutorandos, que são pessoas brancas. Não é um tema que lhes preocupa. Ainda que tenhamos grandes estudiosos nas áreas de Antropologia, e Sociologia, esse número cai vertiginosamente na área de administração de empresas.
Quais os avanços na luta contra o racismo nos últimos anos?
O movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam, que ganhou força nos Estados Unidos após a morte de George Floyd por um policial) foi um divisor de águas no mundo ocidental. Na pesquisa, descobri pessoas que estavam dispostas a fazer mudanças estruturais. Elas estavam se organizando no movimento Mover, ainda embrionário, antes de ser instituição formal. Qual é a perspectiva do Mover? Fazer algo de impacto, ter metas objetivas. Foi uma alegria enorme estabelecer esse diálogo no momento em que a tese estava em construção.
Isso significa que as empresas também avançaram?
Com a chegada do Mover, um grupo de empresas se posiciona publicamente e diz ‘nós queremos mudança e vamos investir nisso’. Não é só discurso, não é só fachada. Ainda que o impacto seja inicial, que muitas outras empresas precisariam se engajar e ganhar esse tipo de conscientização, a presença de 49 empresas no Mover é um tremendo avanço.
Quantos líderes negros existem hoje no Tenda Atacado?
Fizemos um censo interno para entender onde estávamos e aonde queremos chegar. Empresas do Mover, do qual o Tenda Atacado faz parte, já têm mais de 20% de líderes negros, enquanto o número é menor que 5% na maioria das empresas. Ainda está longe do ideal, mas é um tremendo avanço em relação ao ponto em que estávamos.
Como aumentar esse porcentual no mercado?
Investindo em capacitação e letramento. A grande maioria dos recrutadores e líderes é branca. Um dos pontos identificados na pesquisa, nomeados como “normais raciais”, são as regras que não estão escritas. A tendência do recrutador é colocar critérios que não consideram o racismo estrutural. Por exemplo: a contratação de um novo gerente formado apenas em faculdades de primeira linha é uma barreira ligada ao racismo estrutural. Alguns pré-requisitos não são justos ou inclusivos. Estamos procurando acelerar as carreiras para ultrapassar barreiras estruturais que muitas vezes o mundo corporativo impõe.
No livro, o senhor menciona a ‘ideologia da meritocracia’. Como contrapor esse discurso?
Com fatos, estatísticas educacionais, de diferenças salariais, de formados nas universidades, de jovens negros assassinados em violência policial. Para encerrar a conversa, dou o exemplo clássico da corrida. Alguns estão na faixa de largada, bem calçados e bem vestidos. Outros estão 50 metros atrás. A ideologia da meritocracia é uma falácia.
dividerServiço
- Livro: O privilégio é branco - da negação ao racismo às práticas antirracistas
- Autor: Marcos Samaha
- Ilustrações: Maurício Pestana
- Editora: Raça Brasil
Movimento quer criar 10 mil vagas para líderes negros até 2030
O Movimento pela Equidade Racial (Mover) é uma associação formada por 50 empresas que compartilham boas práticas e a aceleração da diversidade, equidade e inclusão. A diretora executiva, Natalia Paiva, aponta avanços na trajetória da entidade na promoção da equidade racial nas empresas.
“O nível de letramento racial hoje é muito maior que uma década atrás. Outro ponto importante foi a criação de políticas inclusivas, como priorizar um recrutamento diversificado e pensar em equidade salarial. Outro eixo de avanço, com contribuição do Mover, é a capacitação e desenvolvimento com foco em pessoas negras”, explica.
Paralelamente aos programas de capacitação, como 35 mil bolsas de Inglês de um ano, 100 bolsas graduação em Administração na Faculdade Zumbi dos Palmares, a entidade desenvolve ações específicas para lideranças, como o treinamento de letramento racial em parceria com o Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), que promove a igualdade racial. Segundo a entidade, 800 líderes já fizeram o curso.
Além disso, o Mover pretende criar dez mil posições de supervisor, coordenador, gerente, diretor e vice-presidente até 2030. Por isso, todas as empresas têm o compromisso de aumentar a participação de negros e negras - cada empresa contribui individualmente com as vagas, sem metas gerais específicas.
Em relação aos desafios da entidade, Natália indica a presença do trinômio “diversidade, equidade e inclusão” de forma transversal nos negócios de uma empresa e na forma de olhar o próprio mundo. “Na hora de contratar um fornecedor, será que as políticas de compras são inclusivas? Será que a comunicação está sendo inclusiva? O desafio é fazer com que equidade não seja apenas um setor”, diz.
* Este conteúdo foi produzido em parceria com o Mover, movimento empresarial que promove a equidade racial por meio de metas, métricas e objetivos compartilhados entre as organizações.
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