Cidadania italiana: por que decreto que muda regras pode ser contestado na Justiça?

Nova norma passa a restringir ‘direito de sangue’ à nacionalidade só a filhos e netos de nascidos na Itália; parte dos juristas vê decreto-lei como inconstitucional. Procurada, Embaixada da Itália no Brasil não se manifestou

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Foto do author Isabela Moya
Atualização:

As mudanças nas regras para obter a cidadania italiana devem ser contestadas na Justiça italiana, dizem especialistas consultados pelo Estadão. A nova norma foi imposta pelo governo italiano por meio de decreto-lei na sexta-feira, 28 e permite o reconhecimento da cidadania pelo “direito de sangue” apenas a filhos e netos de nascidos na Itália. Parte dos juristas avalia que a regra viola alguns princípios constitucionais do país europeu. Procurada pela reportagem, a Embaixada da Itália no Brasil não se manifestou.

  • O decreto-lei italiano funciona como a medida provisória da lei brasileira: o Executivo publica um ato com força de lei, que entra em vigor imediatamente. Mas o texto expira em 60 dias se não for convertido em lei pelo Parlamento, que, nesse período, pode votar pela aprovação - integral ou com modificações - ou rejeição do decreto.

Assim como no Brasil, a medida é usada em situações de emergência ou calamidade pública. Na visão de alguns especialistas, porém, este não é o caso na Itália, por isso, esse tipo de mudança deveria ter seguido o rito normal das propostas de lei, por meio do Parlamento.

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“Nesse caso, não existe nenhuma urgência. Até quinta-feira da semana passada a lei que tratava da cidadania italiana era uma lei de 1992. Ela previa essencialmente a mesma regra desde o século 19, desde a fundação do Estado italiano. Não houve nenhum fato novo que justificasse uma medida de urgência que não seguisse simplesmente o rito normal da promulgação de uma lei, que possibilitasse, por exemplo, a interlocução com o terceiro setor, a manifestação de todos os descendentes, de associações de advogados, associações de pessoas interessadas”, avalia o advogado Fábio Dias.

“Isso pegou todos de surpresa exatamente pela frustração do rito que se esperaria para uma alteração legislativa com essa importância”, completa ele, sócio cofundador do FdS Advogados e especialista em processos de obtenção de nacionalidade italiana.

Decreto do governo italiano restringe a cidadania italiana apenas a filhos e netos de nascidos na Itália Foto: Renata Sattler - stock.adobe.com

O decreto-lei foi criado em um contexto de denúncias contra falsificação documental e fraudes em consulados italianos. Isso foi usado como justificativa para a urgência de abordar o tema, segundo a advogada especialista em direito internacional Marina Ferreira, da assessoria de cidadania io.gringo. Para ela, na verdade, esses casos deveriam ser tratados como uma falha de governo, sem penalizar os cidadãos.

“O decreto justifica como sendo urgente para controlar as fraudes, mas essas fraudes foram cometidas pelas próprias instituições italianas”, diz a especialista.

Houve ainda reclamações de diversas comunes (as “prefeituras” italianas) com relação à alta demanda de pedidos de transcrição das certidões de nascimento de descendentes de italianos, documento requerido para o início do processo de reconhecimento da cidadania do país europeu.

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Para além da questão de ordem procedimental, os juristas veem inconsistências mais substanciais. A principal delas é de supostamente violar o princípio da não retroatividade, ou seja, não extinguir direitos já adquiridos.

Segundo a norma iure sanguinis, os descendentes de italianos nascidos fora da Itália já são italianos desde o seu nascimento, mas é preciso reconhecer essa cidadania por meio de procedimentos burocráticos - seja pela via administrativa ou judiciária. Por isso, críticos da nova lei defendem que essa mudança é inconstitucional, uma vez que retira o direito de pessoas que já nasceram italianos.

“O decreto está dizendo que pessoas que nasceram italianas não são mais italianas, ou seja, desconstitui um direito que já havia, e isso fere a Constituição Italiana e o princípio da proteção ao direito adquirido”, explica Dias.

“Se o decreto respeitasse o princípio da retroatividade, valeria somente para as pessoas que nascessem a partir do dia 28 de março (a partir do decreto)”, diz Ferreira. Ou seja, pessoas nascidas antes da nova lei não deveriam ser impactadas, argumenta.

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Decreto que restringe cidadania italiana é alvo de controvérsias por parte de advogados críticos da medida Foto: alexmu - stock.adobe.com

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Seguindo o princípio do iure sanguinis, que define que descendentes de italianos já nascem italianos, outro ponto contestado pelos advogados é uma suposta violação do princípio da isonomia, que prevê igualdade de direitos entre todos os cidadãos, ao delegar mais direitos àqueles que nasceram na Itália do que àqueles que nasceram fora do território italiano.

“O decreto cria duas categorias diferentes de italianos, como se a gente pudesse ter um italiano com direitos a menos do que outros. De um lado, temos italianos que nasceram na Itália ou que moraram por até dois anos consecutivos na Itália. Essa categoria, quando tem filho ou filha, passa a sua cidadania adiante para os seus descendentes”, afirma Dias.

“Do outro, temos uma nova categoria de italianos com menos direitos: aqueles que nasceram fora do território italiano e que não residiram por dois anos consecutivos na Itália antes do nascimento de seus filhos. Esse passam a não poder passar adiante sua cidadania”, acrescenta o advogado.

Ferreira também questiona o caráter “discriminatório” da regra. “O decreto está inserindo um critério territorial que diferencia o cidadão que nasce no exterior e o cidadão que nasce dentro do país”, diz.

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O governo italiano tem sua base como maioria no Parlamento. Para Ferreira, a principal esperança para reverter a regra está na Corte Constitucional italiana (equivalente ao Supremo Tribunal Federal), que poderá analisar a constitucionalidade da regra.

Para quem não protocolou o pedido de cidadania italiana, a recomendação é esperar os 60 dias de tramitação parlamentar, afirma Rafael Gianesini, CEO da Cidadania4U. “Contudo, quem já teve o processo protocolado até o dia 27 de março não deve ser afetado”, pondera.

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