Classe média e medo de assassinato: Quem são os afegãos que fugiram do Taleban para o Brasil

Levantamento feito a pedido do ‘Estadão’ pelo Observatório das Migrações Internacionais aponta que 3,4 mil imigrantes afegãos entraram no País de janeiro a outubro

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Foto do author Ítalo Lo Re
Atualização:

Quando o grupo extremista Taleban tomou o controle do Afeganistão, há um ano e meio, o diplomata Shabir Ahmad, de 35 anos, se viu em uma encruzilhada. Funcionário do governo afegão em uma embaixada no Irã, ele conta que precisou decidir entre retornar ao seu país ou tomar um novo destino – escolheu a segunda opção. “Eu não tinha direito de ficar no Irã, pois meu visto era político”, explica. Os diplomatas eram alvo da escalada da violência. “Fizemos campanhas contra a violação dos direitos humanos pelo Taleban em nossas missões diplomáticas. Eles disseram: ‘Se vierem ao Afeganistão, não aceitaremos vocês’.”

Com medo, Shabir solicitou visto humanitário ao Brasil e em julho deste ano desembarcou com a família no Aeroporto Internacional de Cumbica, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Por lá, dormiram uma semana no chão – hoje, há outros 80 afegãos nessa mesma condição –, até serem encaminhados para um abrigo em Morungaba, a 100 km da capital paulista. A reportagem esteve no local. Com o diplomata, vieram a mãe, um casal de filhos pequenos e a mulher, grávida de 8 meses na época. A caçula, Fatima, nasceu semanas depois. “É um nome comum na sociedade islâmica e também na brasileira”, diz ele, em inglês. “Ela agora está bem, é uma brasileira.”

O diplomata Shabir Ahmad com a mãe e dois dos filhos em dormitório em Morungaba; no colo dele, a caçula da família, Fatima. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Levantamento feito a pedido do Estadão pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), cooperação entre o Ministério da Justiça e a Universidade de Brasília (UnB), aponta que 3.367 imigrantes afegãos entraram no País de janeiro a outubro deste ano – 98,9% deles pelo aeroporto de Guarulhos. O número é 13 vezes maior do que o registrado no ano passado.

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A tomada do poder pelo Taleban simbolizou a perseguição a vários segmentos da sociedade afegã. As mulheres, sobretudo as ativas no mercado de trabalho, passaram a ser alvo diante da repressão promovida pelo grupo extremista. Assim como grupos étnicos específicos, como o povo hazara, e quem trabalhava nas forças de segurança no país ou em outros setores visados, como a diplomacia ou as universidades. Diante disso, o Brasil concedeu vistos humanitários aos afegãos e autorizou pouco mais de 6 mil deles até o momento.

O País enfrenta agora os desafios de dar um encaminhamento digno para quem chega. “Há dois tipos de afegãos vindo para o Brasil: aqueles que enfrentam problemas políticos e estão se distanciando da insegurança no Afeganistão, e os que fogem da situação econômica do país, que está piorando dia após dia”, conta Shabir. Após o período no aeroporto, hoje ele mora em um chalé na Vila Minha Pátria, abrigo que é coordenado pela Junta das Missões da Convenção Batista Brasileira e recebe famílias desde abril.

Vila Minha Pátria recebe hoje 119 refugiados afegãos; aulas de português são ministradas diariamente. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Conforme a coordenadora da Vila, Fabiola Molulo, o espaço é um “lugar de passagem”. “A ideia não é estabelecer essas famílias no interior de São Paulo, em Morungaba. Aqui é a base de construção desse futuro que a gente quer proporcionar para eles no Brasil”, conta. Para isso, o período indicado para que os afegãos permaneçam no local é de, no máximo, quatro meses. Depois, o objetivo é encaminhá-los para casas de parceiros do projeto localizadas em diferentes cidades, como Rio de Janeiro, Vitória e Brasília.

“Eles precisam do português para se estabelecer no Brasil, então nós temos uma equipe aqui investindo nesse programa”, afirma Fabiola. O espaço, de 180 mil metros quadrados, tem hoje 119 pessoas acolhidas, entre adultos e crianças. Desde abril, já passaram cerca de 400 afegãos pelo espaço, e a expectativa é que esse número cresça caso continue havendo demanda por acolhimento.

A ideia não é estabelecer essas famílias no interior de São Paulo, em Morungaba. Aqui é a base de construção desse futuro que a gente quer proporcionar para eles no Brasil

Fabiola Molulo, coordenadora da Vila Minha Pátria

Distribuídos em 72 chalés, os abrigados têm acesso a alimentação, participam de workshops para capacitação – como de corte e costura – e fazem ainda aulas diárias de português. Outro objetivo é regularizar a documentação daqueles que chegam, para permitir que eles tenham acesso aos serviços públicos brasileiros. A filha caçula de Shabir, por exemplo, nasceu em um hospital público em Itatiba, cidade vizinha de Morungaba.

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Crianças afegãs também têm aulas no abrigo; Vila Minha Pátria fica a cerca de 100 km da capital paulista. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Conforme entidades que auxiliam no acolhimento dos imigrantes, alguns afegãos que vêm para o País têm para onde ir. Mas há outros que, sem destino certo, ficam desassistidos e esperam por abrigos. No último mês, segundo a prefeitura de Guarulhos, o Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante, que faz o cadastro no aeroporto daqueles que precisam de ajuda, atendeu 399 afegãos. Ao longo de todo ano, o número total foi de 1,8 mil, mais da metade dos que entraram no País.

Parte deles já foi encaminhada para vagas em centros de acolhimento da sociedade civil e de órgãos públicos, mas, como solução provisória, dezenas seguem acampados no maior aeroporto do País à espera de assistência. O grupo, que muda de composição a todo momento, chegou a 300 pessoas na última semana. Há alguns dias, dois afegãos testaram positivo para covid, o que elevou a preocupação sobre a situação que se arrasta pelo menos desde agosto. Agora, são cerca de 80 abrigados no aeroporto, mas novos voos chegam a todo momento.

O perfil predominante são famílias, muitas vezes com crianças pequenas, e homens solteiros. São normalmente representantes da classe média do Afeganistão, o que os possibilita comprar as passagens de avião e se dedicar aos trâmites para vir ao Brasil. Ao desembarcar, porém, muitos não têm dinheiro suficiente para alugar um espaço ou um lugar de confiança para ir. Também se veem limitados pela barreira linguística.

‘Sem comida, abrigo ou remédios’

“Quando a gente chegou no aeroporto não havia ninguém nos esperando. Então nós ficamos uma semana no aeroporto, sem comida, abrigo ou remédios”, conta Shabir. Ele relembra que em julho havia uma estrutura ainda mais precária do que a que os afegãos encontram neste momento. Agora, tanto o poder público quanto voluntários que atuam no local conseguem dar uma assistência maior para as famílias.

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Famílias afegãs se aglomeram no aeroporto de Guarulhos em busca de assistência; houve registro de dois casos de covid na última semana. Foto: Taba Benedicto/Estadão

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A prefeitura de Guarulhos atualmente oferece café da manhã, almoço e jantar aos que aguardam acolhimento no aeroporto. Voluntários que atuam junto aos afegãos desde agosto, além disso, recebem doações da sociedade civil, dão assistência a quem chega e se revezam para dormir no local com os refugiados. “Conseguimos avançar em muitas frentes por causa da articulação da sociedade civil”, diz a voluntária Swany Zenobini, que coordena o coletivo Frente Afegã.

O grupo de voluntários começou a atuar no aeroporto na base do improviso e se articulou ao longo dos últimos meses para atender às demandas dos afegãos. Entre as principais iniciativas, o Frente Afegã promove mutirões de saúde para prestar atendimento a quem está no aeroporto e leva os refugiados para tomar banho em um hotel parceiro na região – os banheiros comuns do aeroporto não possuem chuveiro. Busca ainda conversar sobre as possibilidades disponíveis para quem chega ao País.

“Alguns abrigos que estão acolhendo os afegãos não têm estrutura para acolher famílias, porque eles não estavam preparados para isso, tinham outra configuração de pessoas a serem acolhidas. Agora, com essa crise imigratória afegã, a configuração é nova, então muitos abrigos estão tendo que correr atrás”, aponta Swany. Ela diz que os voluntários buscam ser a ponte entre os afegãos e as vagas nos abrigos, que são geridas pelo governo do Estado. “A última coisa que os afegãos querem é separar o único vínculo que eles têm no Brasil que remeta à vida anterior deles no Afeganistão, que é a família.”

Conforme o governo do Estado, o Grupo de Trabalho Acolhimento assegurou direitos à assistência social para 3,5 mil refugiados afegãos que desembarcaram em Guarulhos com vistos humanitários concedidos pelo governo federal. As ações são realizadas em parceria com as prefeituras de Guarulhos e São Paulo, organizações sociais da sociedade civil e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

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A última coisa que os afegãos querem é separar o único vínculo que eles têm no Brasil que remeta à vida anterior deles no Afeganistão, que é a família

Swany Zenobini, coordenadora do coletivo Frente Afegã

Ainda com os avanços, os afegãos que esperam por ajuda seguem dormindo em barracas improvisadas no chão do mezanino do terminal 2 do maior aeroporto do País, entre o posto de atendimento a migrantes e uma agência bancária. “Minha mãe tinha 60 anos e minha mulher estava grávida de 8 meses. Eu tinha duas crianças (na época), uma delas com autismo”, relembra Shabir, sobre o período em que passou no local.

Hoje, ele se diz grato por poder viver com a família em um abrigo – pendurou uma bandeira xiita no quarto em que dorme. Além dos membros da família que vieram com ele, dois irmãos e uma cunhada – que está no final da gestação e prestes a ter o bebê – chegaram um mês depois e hoje são vizinhos no abrigo. O objetivo é conseguir trazer um outro irmão, que era policial no Afeganistão, para recomeçar a vida no Brasil.

Adaptação de famílias afegãs no Brasil

Entre as dificuldades encontradas no Brasil, Shabir destaca não ser fácil conseguir uma fonte de renda e as barreiras linguísticas. “O português é uma língua muito difícil”, diz. Cita também a dificuldade em se acostumar com a comida – relata que a mãe, por exemplo, não come determinados alimentos, como arroz e feijão, e faz o próprio almoço. Ainda assim, ele acredita que eles fizeram a escolha certa ao vir para o País.

“Temos visto famílias afegãs vivendo nos Estados Unidos e no Canadá, após passar por florestas no Panamá, mas isso é tráfico humano, mudam para lá ilegalmente. Nós não queremos isso”, diz Shabir. O diplomata vive a expectativa de ser encaminhado para uma casa em Brasília ainda neste mês, onde quer trabalhar na sua área. “Estamos esperando por isso”, afirma ele, que tem dois mestrados e um doutorado em Relações Internacionais.

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De acordo com Fabiola Molulo, muitos dos afegãos que têm chegado no Brasil possuem formação profissional sólida. “Hoje, nós temos (na Vila Milha Pátria) desde gente que trabalhou como embaixador em algum país representando o Afeganistão a professores, advogados, jornalistas”, destaca ela. Uma equipe de 40 pessoas trabalha diretamente no projeto e busca ajudar essas pessoas a reconstruir a vida.

A coordenadora da Vila Minha Pátria, Fabiola Molulo, lidera uma equipe de cerca de 40 pessoas. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Um dos abrigados é o professor de inglês Amir Ishinzada, de 32 anos, que veio para o Brasil com a mulher, Nahida Yazdani, de 35, há pouco mais de três meses. “Desde que o Taleban tomou o controle do Afeganistão a vida passou a ser bastante difícil para pessoas que trabalham com estrangeiros. Tem também outros empregos, como jornalistas, professores de inglês, ou quem trabalhou em escritórios estrangeiros. Ficou bem perigoso.”

Ele conta que membros do Taleban chegaram a invadir a casa do casal em busca de documentos que pudessem ser de interesse do grupo extremista. Depois do episódio, Amir e Nahida decidiram ir embora da cidade em que moravam, no norte do País, e cruzaram a fronteira até o Irã para emitir o visto humanitário. “É o mesmo Taleban de antes, de alguns anos atrás, com os mesmos alvos. Tínhamos de sair.”

Agora em solo brasileiro, o casal busca uma nova vida. “Não temos medo do amanhã. Nós gostamos de trabalhar, e desejamos continuar nossa vida em um lugar pacífico como o Brasil”, afirma Amir. Sobre a adaptação, diz estar progredindo rápido. “A comida é ok para 217 milhões de pessoas, então tem que ser para nós também. É a cultura do Brasil, não podemos mudá-la, mas nos acostumar.”

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O professor de inglês Amir Ishanzada com sua esposa em quarto temporário. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Como forma de conexão com a vida que tinham no Afeganistão, ele e a mulher fazem chá quente, como de hortelã, diariamente e, em vez de adoçar com açúcar, bebem enquanto chupam uma bala na boca. No chalé em que moram, ficam espalhados tapetes que vieram com eles do Afeganistão, marca comum nos espaços em que vivem os refugiados. Dentro de casa, os pés sempre descalços.

A comida é ok para 217 milhões de pessoas, então tem que ser para nós também. É a cultura do Brasil, não podemos mudá-la, mas nos acostumar

Amir Ishinzada, professor de inglês

A Vila Minha Pátria é um dos abrigos que recebem famílias afegãs no País, mas também há outros locais que se adaptaram ou estão se preparando para isso. Após o cadastro ser feito no posto da prefeitura no aeroporto, os nomes vão para uma central de vagas da sociedade civil e do poder público gerida pelo governo do Estado. Com a alta demanda, Guarulhos abriu dois abrigos para receber migrantes e refugiados, um em agosto, com 27 vagas, e outro em outubro, com mais 20. A administração municipal também trabalha atualmente com uma verba de R$ 240 mil, enviada pelo governo federal, para abrir mais vagas na cidade.

Diretor da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, o padre Marcelo Maróstica conta que a entidade foi chamada pela prefeitura de Guarulhos para administrar o primeiro abrigo aberto na cidade. Ele fala um pouco sobre a experiência. “Nós percebemos que, por ser uma cultura muito específica, a primeira dificuldade deles é entender o português, a maioria fala os idiomas afegãos, como o dari e o pashto, mas outros falam inglês, então a comunicação é através do inglês”, conta. O Google Tradutor é acessado em alguns casos.

Aulas de português estão entre as principais demandas de refugiados afegãos que buscam se estabelecer no Brasil. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Segundo ele, além do curso de português, a população que está no abrigo municipal – montado para receber os afegãos por um período de até três semanas – recebe orientações migratórias e de documentação, além de outros encaminhamentos. “Se precisa solicitar refúgio ou residência provisória, aí as organizações encaminham agendamento da Polícia Federal, para tirar documento, CPF”, conta. Ele diz ser um aprendizado contínuo. “A maioria dos afegãos são xiitas, que fazem cinco orações por dia, e sunitas, que fazem três. Os abrigos têm esse cuidado de ter um lugar reservado para as orações.”

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A Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado diz investir mais de R$ 4 milhões em 100 vagas de acolhimento dos afegãos. Já a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da capital paulista informa que encaminhou, em setembro, 93 afegãos que estavam em Cumbica a um centro de acolhida na zona leste, aberto exclusivamente para esse grupo.

O Ministério Público Federal (MPF) fez reunião este mês, com o objetivo de buscar saídas de acolhimento e interiorização – autoridades já discutem a ida dos refugiados também para outros Estados, como o Paraná. Procurado, o Ministério das Relações Exteriores diz acompanhar a situação, mas acrescenta não ter competência para criar ou executar políticas de acolhida.

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