Combate à fome no Brasil se estagnou, diz ONU

Números divulgados em Roma apontam para aumento marginal de famintos, após anos de queda; de 2010 a 2017, eles passaram de 4,9 milhões para 5,2 milhões

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Por Jamil Chade, correspondente e Genebra

GENEBRA - Dados divulgados nesta terça-feira, 11, pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e um grupo de agências da ONU revelam que o combate à fome no Brasil se estagnou.

De acordo com os estudos, mudanças climáticas têm tido um peso importante nessa nova realidade da volta da fome Foto: Cathal McNaughton / Reuters

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A entidade estima que em 2017 havia “menos de 5,2 milhões” de brasileiros passando fome, uma mudança marginal em comparação aos números que vinham sendo apresentados nos últimos anos.

Em 2014, essa taxa era de “menos de 5,1 milhões”. Dois anos antes, o volume era de 5 milhões. O ponto mais baixo foi atingido em 2010, quando "menos de 4,9 milhões" de brasileiros eram considerados famintos.

Os números atuais estão distantes da realidade de 1999, quando 20,9 milhões de brasileiros eram considerados desnutridos. Em 2004, esse volume havia sido reduzido para 12,6 milhões e, em 2007, era de 7,4 milhões. Em termos porcentuais, entretanto, a FAO aponta que a taxa continua estável e inferior a 2,5% desde 2008.

O relatório, apresentado em Roma, aponta para uma elevação da fome no mundo e uma das regiões mais afetadas pela nova realidade é a América do Sul. De acordo com a FAO, 4,7% da população da região era considerada desnutrida em 2014; hoje, a taxa é de 5%.

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No total, a população com fome passou de 19,3 milhões de sul-americanos para 21,4 milhões em 2017. A taxa, porém, é inferior aos 29 milhões de famintos em 2005 na região.

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Se considerado o critério de insegurança alimentar severo, a América do Sul passou de uma taxa de 4,7% da população em 2015 para 8,7% em 2017. O salto foi de 19,4 milhões de pessoas para 36,7 milhões. Qualifica-se de insegurança alimentar severa uma pessoa que passa um dia todo sem se alimentar ou famílias que têm seus estoques esgotados.

Agravantes

Na avaliação da FAO, os resultados na América do Sul podem ser consequência de “preços baixos nas exportações de commodities, o que levou os recursos financeiros para a importação de alimentos, reduziu a capacidade de governos de investir na economia e reduziu de forma significativa a receita fiscal necessária para proteger os mais vulneráveis contra o aumento de preços domésticos e a perda de renda”.

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De acordo com os estudos, mudanças climáticas têm tido um peso importante nessa nova realidade da volta da fome. O alerta é de que, se nada for feito para lidar com temperaturas e eventos extremos, o problema vai aumentar. Neste aspecto, o Brasil e sua produção agrícola podem ser afetados. No período entre 2011 e 2016, o País já foi um dos mais prejudicados por anomalias no campo, incluindo secas.

'A fome voltou a fazer parte da preocupação dos brasileiros', alerta chefe da FAO

Em entrevista ao Estado e outros meios de comunicação brasileiros, o ex-ministro do governo Lula e criador do Fome Zero, atual chefe da FAO, José Graziano da Silva, apontou que o Brasil precisa crescer a uma taxa de 2% para lidar com sua disparidade de renda. 

José Graziano da Silva - Chefe da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) Foto: EFE/MAURIZIO BRAMBATTI

No momento do lançamento do relatório mundial da fome, nesta terça-feira, ele ainda revelou que os dados sobre a situação alimentar no Brasil precisam ser atualizados para que se tenham uma melhor imagem da dimensão do problema no País. Leia os principais trechos da entrevista:

No final de 2017 o senhor alertou para o risco do Brasil retornar ao mapa da fome e apontou a necessidade de haver crescimento econômico. Agora com a contínua piora econômica e o aumento do desemprego, como vê a situação do Brasil? As políticas de austeridade estão tendo impacto negativo? 

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Eu queria destacar que o Brasil é um dos países que tem uma infraestrutura de política social das melhores do mundo. Então, a cobertura de programas sociais como o Bolsa-Família e a aposentadoria rural são capazes de manter um nível de segurança evitando que as variações conjunturais afetem diretamente ou com mais violência os mais pobres. O que está acontecendo no Brasil, infelizmente, é uma crise prolongada. Não é de hoje que vem aumentando o desemprego, mas a situação dos últimos anos é ainda mais preocupante. Isso porque, segundo mostra a última pesquisa do IBGE, há um contínuo crescimento da informalidade e do número de desempregados desde 2016. Em julho de 2018, eram 27,5 milhões de pessoas desocupadas, subocupadas ou desalentadas. Se comparado com o volume mínimo da série, que foi de 15,4 milhões no último trimestre de 2013, isso significa um aumento de quase 80%. Quer dizer, em praticamente quatro anos, o número de pessoas desocupadas ou subocupadas, ou em desalento no Brasil, mais do que dobrou. Isso quer dizer que há mais gente sem carteira assinada e trabalhando por conta própria, em geral tendo rendimentos excessivamente baixos, o que produz forte impacto no poder aquisitivo dessas pessoas - e, consequentemente, em sua segurança alimentar. Como eu já disse, felizmente o Brasil ainda tem uma proteção social exemplar, e isso impede que essa situação se traduza em um maior número de pessoas com fome. Mas os sinais disso são visíveis, como o aumento de pessoas desempregadas nas ruas e a retomada da campanha do Betinho contra a fome. A fome voltou a fazer parte da preocupação dos brasileiros. Eu destacaria também que os números evidenciados nessa edição de 2018 (do informe da FAO) se referem aos anos anteriores, mais precisamente se refere ao ano de 2017. Dessa maneira, o relatório não trata essa aceleração do desemprego e do crescimento das pessoas em desalento. Também não capta o segundo e terceiro ano em que o a economia tem apresentado índices bem baixos de crescimento. Chamei a atenção na apresentação de que o Brasil, assim como outros países da América Latina em situação similar, precisa crescer ao menos 2% ao ano para garantir a possibilidade de uma melhor distribuição da renda, para que parte desse crescimento da produção chegue aos mais pobres. Isso não tem infelizmente acontecido. 

O governo brasileiro repassou todos os dados requisitados pelas agências das Nações Unidas que elaboraram o relatório de 2018? 

O governo brasileiro tem enviado os dados disponíveis. Nós chamamos a atenção de que ainda nos faltam muitos dados, principalmente na área de nutrição, o que não nos permite uma avaliação mais acurada. Os dados que nós usamos, por exemplo, para calcular o número de pessoas com fome ainda são antigos: estão baseados no triênio 2009/2011. Os últimos dados disponíveis não nos permitiram ter uma atualização do coeficiente de variação que é um dos indicadores fundamentais no cálculo do número total. Também destaco que principalmente os indicadores referentes a nutrição severa precisariam também ser atualizados. Nós esperamos que as próximas pesquisas do IBGE nos permita fazer essa atualização. 

Há uma percepção de que em consequência de uma maior vulnerabilidade das camadas mais pobres da sociedade o programa Bolsa Família precisaria ter seu orçamento ajustado. Além disso, há uma leva de "novos pobres" decorrentes da atual recessão. Qual a opinião do senhor a respeito disso? O programa precisa pagar mais, melhor e a um número maior de famílias? 

De fato, há várias denúncias de corte de gastos e recentemente um jornal brasileiro publicou uma longa lista de mais de 500 programas federais que não tiveram dotação orçamentária para o ano de 2018. Nós, na FAO, não temos condições de checar a veracidade dessas informações, mas é preocupante saber que o limite orçamentário dos gastos possa afetar programa como educação, saúde e alimentação. Essas são conquistas fundamentais da sociedade brasileira e que não poderiam estar limitadas por um orçamento pré-fixado. 

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O relatório também destaca as mudança climáticas como condição para o aumento da fome global. Em que medida esses efeitos são um desafio extra para o combate a fome especificamente no Brasil? 

Os impactos das mudanças climáticas são muito conhecidos: a gente costuma ter seca no Nordeste e inundação no Sul, simultaneamente, no mesmo tempo. E acabamos de sair de uma das piores, talvez a pior seca dos tempos modernos no Brasil, na região nordeste. Foram cinco anos entre 2012 e 2017. Se nós prestarmos atenção, foi interessante notar que, embora a magnitude dessa seca prolongada tenha sido muito superior a das anteriores, não se notou o mesmo movimento de flagelados, de retirantes, de pessoas marchando em direção ao sul do país. Isso se deve em grande parte às políticas implementadas nos governos anteriores, como a política de aposentadoria rural, que é fundamental para reduzir o tema da pobreza na região do nordeste, e o programa de cisternas, que garantiu água potável às famílias mesmo nas condições mais difíceis. A presença do Bolsa-Família, que é realmente a maior fonte de renda dos mais vulneráveis, também é instrumento fundamental para que esses impactos da seca tivessem sido mais reduzidos nesses pequenos povoados do Nordeste. 

São mais de 33 milhões de brasileiros obesos, uma questão de saúde pública preocupante. O que fazer para evitar que isso se transforme em uma epidemia incontrolável? 

O tema da obesidade é uma preocupação crescente no mundo de hoje, porque os números relativos a ela estão disparando. Trata-se de uma verdadeira epidemia. Hoje, temos 670 milhões de obesos no mundo, número que está se aproximando ao número de famintos que divulgamos hoje: são 821 milhões em situação de insegurança alimentar aguda extrema. A obesidade tem aumentado por vários fatores, sobretudo devido ao consumo excessivo de alimentos ricos em gorduras, sal e açúcar. De modo que, qualquer medida de combate a obesidade tem de passar por uma limitação desses produtos que são as bebidas açucaradas, os refrigerantes, os sucos concentrados, e também o que se chama fast food, ou mais particularmente o junk food. O principal ponto para encarar o tema da obesidade é considerar a obesidade um problema de política pública. Não se pode considerar que a obesidade seja um problema dos indivíduos, ou da família. Não pode responsabilizar a mãe pelo filho ser obeso quando nós temos o tempo todo as propagandas de bebidas gasosas, de doces, de refrigerantes nos horários em que as crianças mais assistem televisão. A FAO está trabalhando em ações e defendendo a necessidade em um sistema de alerta às famílias em que chamaremos a atenção àqueles produtos superam o nível aceitável de açúcar, sal e gorduras saturadas, por meio de etiquetas. Também temos defendido que se controle a propaganda, que se controle a venda desses produtos nas cantinas escolares. Também achamos muito importante promover o que nós chamamos de comida saudável. São os produtos frescos, locais, como frutas, verduras, peixes. Produtos que têm impacto na dieta de maneira a dar uma vida mais sadia a pessoas.

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