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‘Comecei a bater no tubarão’: Sobreviventes em Pernambuco lembram ataques, amputações e recomeço

Além das sequelas físicas e psicológicas, fazem parte do cotidiano das vítimas as dificuldades para obter próteses de qualidade e para inserção no mercado de trabalho

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Por Katharina Cruz
Atualização:

Charles Heitor, de 46 anos, Thiago Augusto, de 37, e Pablo Diego, de 39, compartilham um trauma difícil de superar: os três sobreviveram a ataques de tubarões no litoral de Pernambuco. Além das sequelas físicas e psicológicas, fazem parte do cotidiano das vítimas as dificuldades para obter próteses de qualidade e para inserção no mercado de trabalho. Nos últimos 20 dias, a história se repetiu para três pessoas, duas delas adolescentes de 14 anos.

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Charles Heitor Barbosa Pires surfava com os amigos em 1° de maio de 1999, um sábado nublado, na praia de Boa Viagem, no Recife, quando foi atacado por um tubarão. Ele estava sentado na prancha quando sentiu uma coisa grande se aproximando – teve vontade de voltar para a areia, mas não deu tempo. “O tubarão pegou na minha perna, me levou lá para o fundo e começou a me jogar para um lado e para o outro”, relembra. Ao tentar reagir, foi mordido nos dois braços. “Eu já sabia que minha situação era grave porque ele arrancou na hora”, diz ele, que foi resgatado por salva-vidas após engolir muita água.

Cinco dias após o caso, o surfe foi proibido na capital e em Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Paulista e Cabo de Santo Agostinho. Na mesma ocasião, as placas alertando sobre o risco de ataques de tubarão, que hoje são comuns para quem passa nas orlas das praias, começaram a ser instaladas.

Socorrido para o Hospital da Restauração (HR), referência em atendimento de urgência, Pires teve que amputar os dois braços – foi o início de uma dolorosa recuperação. Com troca de curativos semanal e dores frequentes, passou por um período de negação. “Eu não acreditava, para mim era um pesadelo. Eu pensava ‘Por que comigo?’”

Em 2012, 13 anos após o acidente, o ex-surfista ganhou uma causa inédita na Justiça e recebeu próteses biônicas importadas da Escócia, que foram custeadas pelo governo de Pernambuco. Avaliadas em R$ 654 mil na época, elas permitiram a Pires voltar a executar movimentos básicos dos dedos, como segurar objetos. “Comecei a cursar Direito e, com ajuda de um professor, entrei com uma ação judicial. Não tive nenhum tipo de assistência, nenhum apoio do Estado, nem do Cemit, que é o Comitê de Monitoramento de Incidentes com os Tubarões, aqui em Recife”, disse.

No ano passado, ele voltou a brigar na Justiça por uma nova prótese. Desde 2014, a garantia da sua mão biônica expirou. “As próteses que são fornecidas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) já não me servem. Então, procurei a Justiça, justamente para ter uma prótese de qualidade”, explica. Ele fundou a Associação das Vítimas de Ataques de Tubarão (Avituba), em que ajuda sobreviventes na busca por próteses.

Atualmente, a principal fonte de renda do ex-surfista é um auxílio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) no valor de um salário mínimo. Pires, que passa por dificuldades financeiras, pensa em voltar a estudar, desta vez em outra área. Ele deseja cursar Psicologia.

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Charles Heitor Barbosa Pires surfava com os amigos em 1° de maio de 1999, um sábado nublado, na praia de Boa Viagem, no Recife, quando foi atacado por um tubarão. Foto: Leo Caldas/Estadão

Enquanto praticava bodyboarding com amigos na praia de Pau Amarelo, no município de Paulista, Região Metropolitana do Recife, Thiago Augusto da Silva Machado foi mordido na perna esquerda por um Tubarão Tigre, conhecido pelos ataques agressivos em praias do Estado, em abril de 2003. Como estava a cerca de 800 metros da faixa de área, precisou esperar uma “catraia”, um tipo de barco pequeno, passar para pedir ajuda.

Levado ao Hospital da Restauração, Machado, que tinha apenas 17 anos na época, precisou amputar a perna, que foi dilacerada. Nos primeiros dias, teve dificuldades para se aceitar, mas, por meio da fisioterapia, começou a se adaptar à nova realidade. “Cheguei a passar por psicólogos, mas não precisei de muitas sessões. Me adaptei muito rápido com a vida com as próteses”, diz.

Pouco tempo após receber alta, ganhou uma prótese pela Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD). Ele precisou de dois anos para se adaptar ao equipamento. “Eu não recebi nenhum auxílio do governo e ninguém me procurou “, disse. “O governo deveria dar assistência às vítimas e ele não dá.”

Hoje, aos 37 anos, ele trabalha com desenvolvimento de software em uma empresa de tecnologia. Apesar do trauma de 20 anos atrás, conta estar feliz. “Hoje eu estou tranquilo, conquistei minhas coisas, tenho meu carro, minha casa”, disse Machado, que realiza as trocas de próteses ainda na AACD.

Cinco anos em busca de recomeço

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No próximo mês, em 15 de abril, o ataque de tubarão sofrido pelo potiguar Pablo Diego Inácio de Melo na praia de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, completa cinco anos. Ele teve a perna e o braço, ambos direitos, amputados. Com os tendões rompidos, o braço esquerdo também foi afetado.

Apenas em 2021, três anos após o ataque, foi expedido um decreto municipal proibindo o banho de mar nas proximidades da Igrejinha de Piedade, como é conhecido o local. Na ocasião, mais dois ataques ocorreram. Uma das vítimas morreu.

O incidente envolvendo Melo ocorreu enquanto o rapaz tomava banho depois de jogar bola com alguns amigos na praia. A maré estava cheia e o tempo, chuvoso. Ao entrar no mar, não foi tão fundo, apenas o suficiente para retirar a areia do corpo. Com a água abaixo da cintura, foi surpreendido por um Tubarão Tigre. Ele foi mordido na perna direita e tentou se defender com os dois braços, que acabaram sendo atingidos também. “Comecei a bater nele para soltar minha perna, não sei se foi no olho ou nariz. Quando ele sentiu, soltou meu braço”, relembra.

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O potiguar foi socorrido para o Hospital da Restauração, onde permaneceu cerca de um mês internado. Nesse período, passou por seis cirurgias. Com um quadro grave, precisou da ajuda de aparelhos para respirar nos primeiros dias. “Pensei que não iria sobreviver pelo que passei, as dores que eu sentia, o sangue que perdi.”

Após o acidente, o casamento acabou e ele decidiu voltar para o Rio Grande do Norte. “Minha ex-esposa me abandonou”, diz. Ele tem seis filhas, entre 11 e 17 anos, mas nenhuma reside com o pai.

Alguns meses depois do incidente, Melo foi presenteado com uma prótese transfemural – utilizada em amputações acima do joelho – pelo médico Thiago Bessa, da Clínica Boa Viagem, em Recife, que conheceu o caso por meio de uma reportagem na televisão e se comoveu. A doação foi feita por meio do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) e a fisioterapia é realizada de forma gratuita na clínica. Mas entre idas e vindas do Rio Grande do Norte para Recife, a conta acaba saindo cara com gastos com locomoção e hospedagem. “Quando eu vou para Recife eu passo um aperto tremendo porque eu não tenho família”, diz ele, que será submetido a duas cirurgias complementares nos próximos dias.

Entre tantos problemas financeiros e de saúde, Melo passou por depressão nos primeiros meses de adaptação. “Eu fiquei um pouco triste, não vou mentir. Fiquei pensando: como vai ser minha vida daqui para a frente?”, afirmou.

Melo voltou a trabalhar como vendedor ambulante e recebe o BPC/LOAS – benefício socioassistencial pago pelo INSS –, mas a renda ainda é muito baixa. Ele explica que sente dores e o medicamento manipulado custa cerca de R$ 600. Para sobreviver, tem pedido ajuda de amigos e desconhecidos em coletivos urbanos. “Existem pessoas de bom coração que ajudam verdadeiramente e sabem que a minha história é verdadeira, não tem como dizer que é mentira.”

O Hospital da Restauração informou que encaminha os pacientes para serem acompanhados no ambulatório quando há indicação da equipe responsável pela alta hospitalar. No caso da fisioterapia, o tratamento a que o paciente será submetido, assim como a duração, é definido de acordo com o tipo de lesão apresentada.

Procurado para comentar as políticas de assistência às vítimas de ataques, o governo de Pernambuco ainda não se manifestou.

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Medidas

Após três novos ataques de tubarão em um período de 15 dias, no Grande Recife; um em Olinda e dois em Jaboatão dos Guararapes, na praia de Piedade, o governo estadual anunciou a retomada de pesquisas com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), interrompidas desde 2015. O Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (Cemit) também passará por mudanças e será transferido para a Secretaria de Meio Ambiente, Sustentabilidade e Fernando de Noronha.

De acordo com a presidente do Cemit entre 2012 e 2014 e professora do departamento de Pesca e Aquicultura da UFRPE, Rosângela Lessa, já existe um conhecimento adquirido ao longo de décadas sobre esse assunto e ações que foram capazes de reduzir o número de incidentes desde 1992 até 2014. “Creio que esses conhecimentos devem ser a base para as ações que serão tomadas agora. Há necessidade de novos conhecimentos, mas não se pode ignorar o que já se sabe”, afirma.

Apesar dos novos casos, os pesquisadores não acreditam no aumento da abundância dos tubarões nas áreas de ataques. “Acreditamos que o que faz o incidente ocorrer é o aumento do uso da praia pelos humanos e uma série de características ambientais que sempre estiveram presentes”, explica Rosângela, que chama atenção para a alteração no padrão de uso do ambiente devido a mudanças climáticas. “Sabe-se que tem consequências importantes para os peixes e especialmente para os tubarões “, diz.

Atualmente, em todo o Estado, foram registrados 77 incidentes com tubarões, desde 1992, quando começaram os registros oficiais. Ao todo 26 vítimas morreram e 51 sobreviveram.

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