Brincar é o melhor de ser criança. Muito além da imaginação, criatividade e espontaneidade trabalhada no pega-pega ou numa conversa de roda, é ali que as habilidades para o mundo adulto são aprendidas. “O brincar leva a criança a refletir, porque ela tem de solucionar o problema, descobrir, explorar o material. Além de ensiná-la que errar faz parte e existe um coletivo com ela – sejam os pais ou os colegas”, explica Maria Ângela Barbato Carneiro, coordenadora do núcleo de cultura e pesquisas do brincar da PUC-SP.
De acordo com a psicóloga Manuella Bayma, a brincadeira é a base do desenvolvimento infantil. “Por meio dela a criança se comunica, explora o mundo e constrói bases das esferas emocionais, psicológicas e cognitivas”, afirma. Por isso mesmo, a presença da família nesses momentos é fundamental – e vários pais têm resgatado elementos das próprias infâncias para incentivar experiências além das telas. Parte das escolas também aposta em jogos e brincadeiras “das antigas”, com o objetivo de explorar espaços e convivências.
Para a farmacêutica Elen Abe, mãe de Maria, de 6 anos, o brincar está intimamente ligado à maneira que se constrói a família. “Tem a ver com o modo que nos relacionamos, que resolvemos conflitos juntos, como escutamos ela e vamos nos conhecendo mais: eu como mãe, ela como filha e o Bruno como pai.”
INFÂNCIA
Nesse processo, ela faz questão de trazer elementos da sua infância para a da filha. “Quando eu era criança não existiam telinhas. E me lembro de ser tão gostoso brincar com a imaginação, transformar qualquer coisa em brincadeira. Por isso sempre teve muito estímulo para ela aqui em casa, com tinta, jogos e clássicos da minha infância, como taco, amarelinha, pega-pega, mas o favorito do momento é bolinha de gude, porque ela ganha do pai.”
É fato que a criança aprende mais rapidamente do que o adulto. Isso ocorre pela neuroplasticidade infantil: a capacidade do cérebro ser remodelado. É o que possibilita a aquisição de novas competências (cognitiva, sensorial, motora, social e emocional) sobretudo na primeira infância (do nascer aos 5 anos).
No brincar, porém, há muito da expressão da criança e é tarefa da família descobrir essas preferências. Seja criando hábitos, regras ou com incentivos, como estreitar laços entre a infância dos pais e a da criança. Foi assim que o músico Gabriel Salve e a atriz Marcela Puppio convenceram Francisco, de 7 anos, a experimentar o futebol de botão. “Falei que jogava com meu avô quando era criança e ele teve muito interesse. Aí fizemos exatamente como eu jogava, com bolinha de miolo de pão. Ele adorou e agora jogamos direto”, lembra Salve.
Como a família é de artistas, os trabalhos manuais também fazem parte da rotina. “Ele adora desenhar, pintar e fazer artesanato”, conta o pai.
O dia a dia de trabalho dos pais e a escola em tempo integral reduzem o tempo para as brincadeiras da família Moretti, mas os fins de semana são sempre em algum parque, em família. “O que mais gosto de fazer é andar de bicicleta”, diz Rebeca, de 6 anos. Rafael, de 4 anos, prefere o patinete: “Foi minha irmã que me ensinou a andar.”
Dentre os parques prediletos da capital paulista, os irmãos são fãs do “Parque das Galinhas” – o da Água Branca, na zona oeste, que tem criação livre de animais. Quando o clima não coopera, a família deixa a criatividade fluir dentro de casa. “Pegamos materiais recicláveis e usamos para pintar ou construir um brinquedo”, conta a mãe, Camila. Rebeca aproveita ainda para aprender culinária com a avó. “Ela pratica fazer pão, bolo ou biscoito.”
CRIATIVIDADE
O incentivo do contato da natureza e a criatividade são bases importantes da Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) Dona Leopoldina, também na zona oeste. “A escola tem uma proposta ‘brincadeira e natureza’ e incentiva a hora de brincar diariamente”, conta a diretora Márcia Covelo. Ali, num quintal de quase 9 mil m², os professores incentivam a conexão das crianças com espaços de aprendizado ao ar livre.
Já na Casa Balancê, recém-inaugurada na Mooca, zona leste, o objetivo é dar asas à imaginação fora das telas – ali não há tecnologia. “Eles podem pintar a parede, fazer colagem com glitter, se sujar de argila. A criança fica livre para brincar, explorar e se desenvolver”, descreve Karen Neves, idealizadora da casa. Segundo ela, algumas crianças, principalmente as mais velhas, têm dificuldade de criar ou se sujar. “Pais nos procuram porque não têm espaços de brincadeiras como o nosso ou não saberem como estimular o brincar em resposta às telas”, diz.
Conforme Maria Ângela, da PUC-SP, o grande problema das telas é que não estimulam reflexão por parte da criança, que “será repetidora de meras coisas que existem”. Os eletrônicos podem existir no dia a dia, mas de forma limitada. “A tela entra como apoio para os pais, por conta de uma sobrecarga. Mas acho importante sempre ser usada com moderação”, diz Renata Nakano, mãe de Clarice, de 4 anos, Manuela, de 2, e Lara, de 5 meses.
A rotina do sono em sua casa sempre envolve a leitura. “As brincadeiras são aleatórias e acontecem naturalmente. Toda noite lemos com elas, num momento nosso. Elas vão desligando, se acalmando, e conversamos sobre a história”, afirma Renata, editora e idealizadora do Quindim, um clube de assinatura de livros infantis.
“O que mais faz uma pessoa gostar de ler é o afeto. Não é a mãe ler para a criança, mas sim essa troca entre o adulto, com o olhar da experiência e repertório, e a criança, com olhar mais livre de preconceito e associações espontâneas do dia a dia. Esse encontro tem uma potência criativa muito rica para ambas as partes”, avalia.
A criança, acrescenta Maria Ângela, tem diferentes linguagens. “O brincar é uma, mas não é isolado. A pintura livre ajuda a pensar, imaginar a partir de experiências; a leitura pode virar um teatrinho ou história.”
Na pandemia, Renata afirma que suas filhas tiveram mais tempo nas telas e percebe mudanças no comportamento. “Especialmente com a minha mais velha, percebi que, dependendo do desenho, ela ficava muito mais sensível, ansiosa e até irritada. É muita informação”, diz.
“É como se (as telas) acostumassem o cérebro da criança com a velocidade de informação, luz, cor e movimento, que é muito distante da realidade. Pode dificultar a aprendizagem e gerar ansiedade”, diz Manuella Bayma.
No colégio privado Ítalo, na zona sul, busca-se unir os dois mundos de modo saudável. “Nossa escola tem o selo de referência Google. Trabalhamos com a tecnologia desde os pequenos, mas não deixamos isso dominar. A grande diferença é que temos a parte do mão na massa”, conta a coordenadora pedagógica Thais Bonfim. “Antes de ir para o eletrônico, tem a parte do papel, que é importantíssimo”, continua.
Para incentivar brincadeiras, oficinas e datas especiais são propostas, como o Dia da Família. “Para os alunos do 5.º ano, fizemos um dia com brincadeiras antigas e a participação dos avós, no qual eles ensinavam os netos. Além disso, no 1.º ano, trabalhamos com brincadeiras de ontem e hoje”, conta. “Conseguimos resgatar um pouco disso e fazer com que criem esse laço com os avós e os pais para saber as brincadeiras favoritas deles.” Para Maria Ângela, brincar não tem manual. “Basta atiçar a criatividade”, ensina.
‘Brincar é um protótipo das relações humanas’
Entrevista com Manuella Bayma psicóloga da infância e da adolescência
Qual a importância da brincadeira para a criança?
A brincadeira é fundamental para o desenvolvimento. É quase um protótipo das relações humanas, porque cria laços sociais, adquire comportamentos, como aprender a dividir, competir e liderar. Na parte emocional, estimula emoções que vão da raiva e frustração até felicidade e bem-estar. E a parte motora impulsiona uma série de habilidades, como chutar, correr e pular. Para nós, profissionais, quando uma criança não brinca ela está comunicando que precisa de ajuda.
É importante a presença dos pais na brincadeira?
Eu acredito que cada pai e cada mãe deve aprender o seu jeito de brincar. Os filhos ficam muito felizes com a presença dos pais nas brincadeiras e ela gera uma construção de momento de qualidade que é muito importante para o cérebro da criança e o desenvolvimento das suas emoções. Além de os pais terem contato com a própria criatividade.
O brincar pode ser educativo?
Com certeza. Os pais podem usar esse momento para trazer uma série de ensinamentos, diálogos e trabalhar os temas cotidianos ou passar os valores da família. Em vez dos momentos de sermão, brincando você pode conversar por meio dos objetos lúdicos sobre temas importantes e deixar que a criança não só absorva o que foi falado, mas também crie uma memória afetiva.
Como podemos incentivar momentos de brincar com as crianças?
O universo da ludicidade é amplo: há os que estimulam a memória, criatividade, liderança e os mais fluidos. Por isso é interessante que os jogos estejam espalhados de maneira que a criança os encontre fácil. Mas o principal incentivo é a presença de um mediador.
Brincar em família
- Crie opções
Não há problema em usar as telas uma vez ou outra. No entanto, evite recorrer a elas todas as vezes. Que tal da próxima vez que estiver em um restaurante a família brincar de jogo da velha, por exemplo?
- Incentive o brincar
Além de diversos espaços de brincar na capital paulista, como a Casa Benjamina na Vila Madalena ou a Terra de Brincar no Brooklyn, são vários os restaurantes com propostas de jogos em família ou amigos, como o Ludus Luderia, na Bela Vista ou o Fan Hour, em Pinheiros.
- Aproveite o momento
O jeito que seu filho brinca pode dizer muito sobre a sua personalidade. Observe os motivos que o fazem vibrar de felicidade ou se frustrar, aproveite para conversar sobre isso, impor limites e perceber como a o pensamento e a imaginação dele podem fluir.
- Garanta a diversão
Brincar não significa ter objetos caros. Opções de brinquedos educativos são boas alternativas para o desenvolvimento da criança.
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