Apontado como um dos principais chefes da máfia italiana ‘Ndrangheta, da Calábria, Rocco Morabito foi capturado em um flat em João Pessoa, na Paraíba, no dia 24 de maio de 2021. Dois anos antes, ele havia fugido da prisão no Uruguai. Desta vez, isso não seria possível.
“Questi maledetti Carabinieri (Esses malditos Carabineiros)”, disse ao ser abordado pela Polícia Federal, em alusão aos agentes da polícia italiana. Na mira das autoridades desde 1994, o mafioso, hoje com 58 anos, foi mandado para a Itália em julho de 2022. A reportagem não localizou a defesa de Morabito.
À época, ele era considerado o segundo foragido italiano mais importante, atrás apenas de Matteo Messina Denaro, da Cosa Nostra. O mafioso foi encontrado no apartamento 307 do condomínio Eco Summer Tambaú, a uma quadra da praia, um dos cartões-postais da capital paraibana.
Ao lado dele, estava Vincenzo Pasquino, criminoso que mais tarde firmaria acordo de delação para revelar a relação da máfia com o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), as duas maiores facções brasileiras. A defesa de Pasquino também não foi encontrada.
Vídeo obtido pelo Estadão mostra a dupla na porta do quarto do condomínio no mesmo dia em que eles foram presos. A gravação, em que foi possível reconhecer os mafiosos, fez a PF deflagrar o plano de captura.
De máscara anticovid nas imagens, Morabito era o alvo número um no mundo do projeto I-CAN (International Cooperation Against ‘Ndrangheta), iniciativa da Interpol criada para combater aquela que é considerada uma das maiores máfias do mundo, com atuação em ao menos 32 países.
“As informações são de que a ‘Ndrangheta coordenava entre 80% a 85% do tráfico de cocaína no mundo”, disse ao Estadão a delegada da PF Dominique Oliveira, que no período da prisão atuava como coordenadora do projeto I-CAN no Brasil.
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No Uruguai, o mafioso foi preso em 3 de setembro de 2017 com documentos brasileiros, em operação conjunta entre agentes da Interpol no Brasil e do país vizinho. Morabito atendia pelo nome de Francisco Antonio Capelleto Souza e alegava ter nascido no Rio de Janeiro. Às autoridades uruguaias, afirmou que o documento foi obtido em uma unidade do Poupatempo de uma estação de trem em São Paulo.
Quando foi preso no Uruguai, foi encontrado em um quarto de hotel com U$ 54,2 mil, 13 aparelhos de celular, 12 cartões de crédito, 15 chips de celular, um pistola Glock 9mm e documentos variados, o que ajudaram a mostrar as relações estreitas com ‘Ndrangheta.
Na Itália, Morabito já havia sido condenado em pelo menos quatro processos por tráfico de drogas, com penas que vão de 22 a 30 anos de prisão.
“Denaro já estava praticamente sem influência na Cosa Nostra. Diferentemente de Rocco Morabito, que continuava coordenando as ações da ‘Ndrangheta de onde estivesse”, afirma Dominique, hoje secretária executiva da pasta de Defesa Social de Pernambuco.
Em 2019, Morabito escapou com mais três detentos do Presídio Central em Montevidéu por um buraco no teto, o que causou constrangimento aos governos. “É desconcertante e algo muito sério que um criminoso como Rocco Morabito, chefe da ‘Ndrangheta’, tenha conseguido escapar de uma prisão no Uruguai”, declarou o então ministro italiano do Interior, Matteo Salvini.
Logo após a fuga em Montevidéu, o escritório da Interpol no Brasil representou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela expedição de mandado de prisão preventiva em face de Morabito. O pedido foi deferido pela ministra Cármen Lúcia.
Para se manter no Brasil, como o Estadão mostrou, o mafioso se aliou a traficantes brasileiros. Em troca de ajuda na logística, pagava os criminosos locais com droga que era distribuída na Baixada Santista e em Santa Catarina.
Na capital paulista, ele e Pasquino foram morar no Tatuapé, na zona leste, onde líderes do PCC compraram imóveis de luxo e levavam uma vida de ostentação. Os mafiosos, porém, tinham uma rotina mais discreta, com viagens de ônibus e silêncio nas redes sociais.
Reunião com mulher de preso do CV deu pista
Considerado figura secundária na época da prisão, Vincenzo Pasquino, de 34 anos, foi extraditado para a Europa em fevereiro deste ano. Agora ele promete revelar os meandros das relações da máfia italiana com o PCC – uma força-tarefa de autoridades brasileiras e europeias foi montada para tratar do caso.
Apontado como um dos maiores intermediários do tráfico de cocaína da América do Sul para clãs mafiosos da ‘Ndrangheta, Pasquino mantinha relações estreitas com integrantes do PCC e do CV.
A equipe coordenada pela delegada Dominique Oliveira mapeou rastros deixados por ele no Brasil, em parceria com o escritório da Interpol da Itália. A PF passou a observar passageiros que vinham do país europeu para o Brasil e que pudesse ter relação com a ‘Ndrangheta.
“Percebemos que ele (Pasquino) era um que sistematicamente vinha e começamos a acompanhar os passos dele no Brasil”, disse Dominique. A ideia era não demorar muito para “dar o bote”.
Em um dos períodos em que ele esteve por aqui, Pasquino teve um encontro de negócios em Copacabana, zona sul do Rio, com a mulher de um integrante do Comando Vermelho que estava preso em Bangu 1. “Então, ele ficou mais ainda no nosso radar.”
“A informação naquele momento era de que, como o Porto de Santos é muito visado pelas forças policiais e pela Receita Federal, a ‘Ndrangheta, junto com o PCC, procurava pontos no Nordeste e no Sul para transferência de parte das operações de tráfico”, disse Dominique.
Operação de captura teve ajuda até do FBI
Por mais que a PF estivesse sempre no rastro de Pasquino, as informações sobre o paradeiro dele chegavam atrasadas, por isso a dificuldade em prendê-lo. A hipótese é de que ele fazia muitos deslocamentos terrestres, de ônibus e carro, o que dificultou a busca.
A PF só ficou mais próxima do criminoso quando mapeou o endereço em João Pessoa. Para isso, foi central a ajuda do FBI, o Escritório Federal de Investigação dos Estados Unidos.
“Eles conseguiram quebrar um sistema de comunicação que era usado não só pela Cosa Nostra, mas também pela ‘Ndrangheta, e recebemos dados de telefones usados pela ‘Ndrangheta”, disse Dominique. O sistema em questão era o Sky ECC, usado por mafiosos de todo o mundo e derrubado pelo FBI.
A operação motivou uma carta de agradecimento de Vittorio Rizzi, vice-diretor geral do Departamento de Segurança Pública do Ministério do Interior da Itália, que expressou “agradecimento e admiração” em relação à atuação dos agentes brasileiros.
Com Pasquino e Morabito havia dez celulares. Dominique afirma ter dito aos colegas: “Se quiserem efetivamente combater o PCC, o Comando Vermelho e outros distribuidores de drogas, está tudo aí”. A opção, na época, foi pela extradição dos mafiosos e o envio dos aparelhos para análise da polícia italiana.
Para Dominique, Morabito não vai seguir o caminho da delação premiada. “Não é o perfil dele.” Além disso, a máfia é baseada em vínculos entre clãs familiares, o que cria uma espécie de lei do silêncio. “Já o Pasquino, quando saiu daqui, as autoridades italianas já sabiam que iria fazer delação premiada.”
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