Na manhã de sexta-feira, 17 de fevereiro, os ouvintes de uma rádio do interior da província de Buenos Aires foram surpreendidos: “Incrível, mas real”, o locutor anunciava, o Cerro Tres Picos, na Sierra de la Ventana, estava coberto de neve em pleno verão. Fazia cerca de 4ºC na região, recorde em mais de 60 anos. No mesmo dia, a temperatura caiu de 40ºC para até 15ºC no Rio Grande do Sul. No sábado, 18, a onda gelada quebrou um recorde de 110 anos no Estado. No domingo de carnaval, geou na Serra Gaúcha. Àquela altura, o maior volume de chuva já registrado no Brasil causava uma tragédia no litoral norte de São Paulo.
Uma massa polar de ar seco e frio, associada a um centro de alta pressão estava por trás das quedas de temperatura na Argentina e no Sul do Brasil. Ao avançar em direção a São Paulo, encontrou um fluxo de umidade vindo do mar para o continente, gerado por um centro de baixa pressão.
A isso pode ter se somado o efeito de um evento também fora dos padrões: uma onda de calor marinho de até 5ºC acima do normal numa faixa que se estendia da Argentina ao Sudeste brasileiro desde o final de novembro - período que coincide com uma seca intensa no cone sul do continente. Na véspera da chuva extrema, dados de satélites mostravam que a temperatura da superfície do mar estava até 3ºC acima da média na costa paulista.
Uma cadeia de eventos conectados entre si geradas por condições meteorológicas fora do comum. “Todos esses fenômenos juntos, um impactando o outro e interagindo, contribuíram com pesos diferentes no que ocorreu no litoral de São Paulo. A atmosfera é um fluido só”, afirma Estael Sias, meteorologista da MetSul, que trabalhou durante sete anos na Defesa Civil do Estado de São Paulo.
Todos esses fenômenos juntos, um impactando o outro e interagindo, contribuíram com pesos diferentes no que ocorreu no litoral de São Paulo
Estael Sias, meteorologista da MetSul
Ela explica que eventos extremos, como a neve no Cerro Tres Picos, na Argentina, sempre precedem outros eventos extremos. “Havia muita energia acumulada e algo assim poderia acontecer”, afirma.
Não só por isso o temporal de mais de 600 mm em 24 horas no litoral norte não a surpreendeu. Na quinta-feira, 16 de fevereiro, ela e seus colegas fizeram a primeira previsão de que um evento extremo se aproximava da região. Um dos modelos matemáticos utilizadas pela empresa apontava incialmente chuvas de até 500 mm em 24 horas. As previsões mais drásticas de outros institutos falavam em 250 mm. No dia seguinte, o volume previsto pela equipe da MetSul já era de cerca de 700 mm.
Nesse período, Estael se reuniu com os colegas e decidiram por alertar a população. O primeiro alerta, ao meio-dia de sexta-feira, advertia que poderia chover 500 mm ou mais e falava em um “cenário de elevado perigo por chuva excessiva no litoral do estado de São Paulo nos próximos dias com acumulados de precipitação projetados por modelos numéricos com valores extraordinariamente altos e que podem acarretar transtornos e consequências que oferecem perigo para a estrutura e a população locais”.
O alerta falava ainda sobre as as cidades em risco, do litoral sul ao norte, e expressava preocupação com a chuva extraordinária coincidir com o carnaval com muita gente na praia e em estradas: “O cenário vai exigir muita atenção em rodovias da região, sobretudo na Serra do Mar e junto à região serrana, ante a elevada probabilidade de queda de barreiras. As precipitações por vezes podem ser torrenciais no Sistema Anchieta-Imigrantes assim como na rodovia Rio-Santos, por conta da orografia (relevo). A ocorrência deste evento de chuva extrema coincidindo com o feriadão de Carnaval, com um grande número de pessoas nas estradas e buscando as praias do litoral, exige ainda mais atenção pelos riscos envolvidos.”
No mesmo dia, Estael publicou um vídeo de alerta no canal da empresa no Youtube em que a advertia para chuva de até 500 mm, inundações e deslizamentos.
O segundo alerta foi divulgado na manhã de sábado, aumentando a projeção de chuva para 700 mm. Dizia: “Trata-se de uma condição de enorme perigo ante a probabilidade de que os volumes de chuva em alguns pontos possam atingir quantidades equivalentes de precipitação a dois ou três meses (e o verão tem altas médias de precipitação na região) em apenas 24h a 36h.”
E acrescentava: “Sob este cenário, a MetSul Meteorologia antecipa uma alta probabilidade de alagamentos e inundações, em alguns casos repentinas, além de um elevado risco de quedas de encostas e ainda deslizamentos de terra. Os acumulados de precipitação são condizentes com um risco geológico extremo e uma situação meteorológica de alerta vermelho (o mais alto da escala)”.
Um terceiro alerta, nowcasting (de curtíssimo prazo), foi divulgado no começo da madrugada do domingo: “Os volumes em pontos da região atingem níveis que em Meteorologia se denominam como chuva potencialmente catastrófica. Neste patamar de precipitação, nos Estados Unidos, o Serviço Nacional de Meteorologia emite raro alerta de emergência por chuva. A MetSul enfatiza que é cenário de excepcional perigo por inundações e principalmente deslizamentos de terra. Volumes na magnitude de 500 mm ou mais em poucas horas têm potencial de gerar massivos escorregamentos de encostas com partes de morros inteiras vindo abaixo”.
Tensão
Nessas 48 horas, a tensão dominou a equipe, diz Estael, que explica que o modelo utilizado pela empresa, chamado WRF, faz simulações de computador em áreas de até 2,5 km quadrados, com a qual é possível fazer a previsão para bairros e pontos menores. No entanto, quanto maior o refinamento dessa previsão, menor o tempo previsto. Por isso, outros modelos são utilizados ao mesmo tempo. “Já vimos previsões de 500 mm em outros modelos que sabíamos que iria mudar”, diz Estael.
Segundo ela, situações assim colocam o trabalho de meteorologistas à prova. “A gente sabe o peso do erro, se anunciar que terá uma chuva dessas e não acontecer, o descrédito que isso pode causar”, diz. “Mas não tivemos dúvida. Era uma situação muito delicada.”
A meteorologista vê na tragédia de São Sebastião uma série de eventos e situações que se encadearam para despejar em 24 horas o equivalente a três vezes o volume de chuva esperado para a cidade. Mas não só. Ao longo da carreira, ele vem observando mudanças no padrão de chuvas de diferentes locais. “Isso é nítido, é muito fácil perceber que está aumentando”, afirma. “Uma empresa nos pediu para fazer um estudo sobre o padrão pluviométrico de Porto Alegre e descobrimos que de 1993 para cá, o número de eventos extremos de chuva forte aumentou 37%.”
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