Como o PCC negociou fuzis AK-47 com a máfia italiana; armas poderiam ajudar em resgate de Marcola

Mensagens inéditas da Operação Eureka às quais o ‘Estadão’ teve acesso mostram como a facção acertou a venda de cocaína para a máfia ‘Ndrangheta em troca de armas; reportagem não conseguiu localizar acusados

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Foto do author Marcelo Godoy

Mensagens inéditas da Operação Eureka, a maior investigação sobre os negócios mundiais da ‘Ndrangheta, a máfia da Calábria, mostram como operam o tráfico de armas para o Primeiro Comando da Capital (PCC) e a remessa de toneladas de cocaína do Brasil para a Europa.

O Estadão teve acesso às quase 3 mil páginas da investigação italiana. Elas trazem detalhes de crimes cometidos nos dois países revelados por meio da delação premiada do mafioso Vincenzo Pasquino, preso no Brasil em 2021 ao lado do chefão da ‘Ndrangheta Rocco Morabito. Por causa dela, um grupo especial de procuradores brasileiros e italianos foi criado para analisar os provas obtidas. A reportagem não conseguiu contato com as defesas dos acusados.

Trecho da investigação italiana com a Foto enviada pelos traficantes de armas para os mafiosos da 'Ndrangheta: fuzis AK-47 teriam como destino o PCC Foto: Reprodução/Estadão

Pasquino foi extraditado para a Itália em março. Morabito foi quem esteve no centro da operação para fornecer armas para o PCC em troca de cocaína. Uma das suspeitas dos promotores brasileiros é de que as armas seriam usadas pela facção para o plano de resgate de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, um dos líderes do PCC, preso em Brasília.

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Segundo as investigações da procuradoria de Reggio Calábria, além de Rocco Morabito estão implicados na venda de armas para a facção os mafiosos italianos Francesco Gligora e Pietro Fotia. Eles agiram em conjunto com paquistaneses para entregar o carregamento de Kalashnikovs a “uma organização criminosa paramilitar brasileira”. Os italianos foram intermediários do negócio. A reportagem também não conseguiu contato com as defesas dos demais investigados.

As principais provas da promotoria vieram de mensagens criptografadas decifradas pelo Raggruppamento Operativo Speciale (ROS), dos Carabineiros. A polícia italiana obteve as provas com a polícia francesa, que sequestrou o material no servidor do sistema de mensagens Sky ECC, usado por mafiosos italianos, traficantes servo-montenegrinos e paquistaneses e outras de organizações criminosas ao redor do mundo.

Trecho da troca de mensagens entre os mafiosos italianos e de fotos sobre as armas que iam mandar para o Brasil: 'Esse são os que estão no Paquistão' e 'É preciso uma empresa no Brasil' Foto: Reprodução/Estadão

No último dia 29 de outubro, o escândalo da Sky ECC levou à condenação de 116 dos 125 acusados de operar uma rede de tráfico de drogas no Porto de Antuérpia, na Bélgica. Segundo os investigadores, os mafiosos usavam criptofones tchecos para comunicação. Esses aparelhos impedem que a conversa seja rastreada por terceiros. Além de traficar drogas e armas para as Américas, Europa e Austrália, eles mantinham contatos com grupos chineses para movimentar recursos e lavar dinheiro.

Foi ali que os investigadores acharam as provas de que o PCC negociava um carregamento de 400 fuzis AK-47 do Paquistão por meio de Morabito. Segundo as investigações italianas, a ligação de Morabito com o Paquistão se dava por meio do italiano Pietro Fotia, que mantinha relações com a máfia dos Bálcãs e traficantes de armas paquistaneses. Esse elo ajudava a retirar a cocaína no Porto de Gioia Tauro, na Calábria, sul da Itália.

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Segundo os investigadores italianos, a primeira mensagem de Fotia para Rocco pelo sistema criptografado foi localizada em 23 de agosto de 2020. Ali tratavam de outra empreitada: ele avisava que ia usar seus contatos com os “napolitanos” (mafiosos da Camorra) e em Marselha, na França, para arrumar documentos para Rocco.

Marcola está na Penitenciária Federal de Brasília Foto: Gabriela Biló/Estadão

A negociação pelo sistema Sky Ecc ocorreu entre 15 de janeiro de 2021 e 8 de março de 2021, envolvendo mensagens disparadas de Gênova e Áfrico, na Itália, e do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Uma das suspeitas do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo, é de que as armas serviriam para o plano de resgate de Marcola. Os italianos teriam se encontrado para tanto com Marcos Roberto Almeida, o Tuta, então um dos principais líderes da facção em liberdade. A reportagem não conseguiu contato com a defesa de Tuta.

Na época, o PCC arregimentava paramilitares e mercenários para invadir a penitenciária federal onde Marcola estava detido. O grupo seria treinado no Paraguai, onde desde 2014, segundo o Gaeco, “o PCC estabeleceu aliança com guerrilha paraguaia, denominada EPP (Exército do Povo Paraguaio), grupo armado que se declara marxista-leninista e que foi responsável por sequestros e atentados contra autoridades naquele país”.

Trecho do Relatório de Inteligência 15/2023 sobre o plano de sequestro de Moro que detalhe o treinamento de integrantes do PCC por integrantes do EPP paraguaio Foto: Reprodução/Estadão

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Por essa aliança, a facção recebia treinamento de seus integrantes, que incluía a prática de tiro, conhecimento e emprego de explosivos, “táticas e posturas adequadas para a guerra”, segundo relatório de inteligência do Gaeco. O objetivo era qualificar homens para integrar “grupos de elite”, que seriam empregados em missões específicas, pontuais e que necessitavam de “resposta de morte”.

Os contatos com os paquistaneses e os brasileiros

Além de Fotia, responsável pelos contatos no Paquistão, Morabito recebia ajuda de Francesco Gligora, que cuidava da relação com os brasileiros que receberiam as armas. Entre eles estava um bandido que se identificava como Flamengo.

Em 15 de janeiro de 2021, Fotia escreveu ao seu cunhado Antonino Palamara informando: “Para as armas pode mandar sem problema, um contêiner de ‘kala’ (fuzis kalashnikov ou AK-47) já está vendido.”

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Após quatro horas, Fotia perguntou a Morabito para onde ele devia enviar o contêiner. Em 2 de fevereiro, a conversa foi retomada por meio das mensagens entre Fotia, Palamara e Rocco e Carmelo Morabito, sobrinho do chefão. Este escreveu: estava conversando com um amigo no Rio... querem armas... será que se encontra uma empresa... Podemos mandar do Paquistão?”

Os destinatários das armas, segundo os procuradores italianos, eram de uma organização criminosa brasileira envolvida no narcotráfico internacional. Fotia então pergunta a Rocco: “Sempre armas de grosso calibre?” E este responde: “Sim grosso, ok”. Os brasileiros queriam fuzis kalashnikovs, os AK-47. Fotia pede confirmação se devia ir ao Paquistão: “Porque me disseram a ex-União Soviética, porque depois vou ao Paquistão.”

A reportagem não localizou as defesas de Palamara e Carmelo Morabito.

Trechos das mensagens entre Morabito e Gligora sobre a benda de armas para o Brasil e o interesse dos brasileiros: "Interessam a eles aquilo que você sabe' Foto: Reprodução / Estadão

Mais tarde, Morabito diz a um interlocutor identificado pelo código UI K83UX&: “Me basta um contêiner. Devemos mandar ao Brasil”. Fotia responde que era importante ver o lucro.

Rocco se encontra então com “Flamengo” em 5 de fevereiro. Nesse dia, Gligora enviou mensagem a Rocco, mostrando como as armas seriam pagas: com drogas. “Esta noite me encontro com Flamengo. Ele quer me mostrar o material. Conto depois para você.”

O Paquistão não surgiu à toa no negócio. Dois meses antes, em 20 de dezembro, Fotia havia proposto a Rocco que se mudasse para lá para seguir foragido. “Quando conseguirmos o passaporte para você, pode se mudar para o Paquistão. Dubai está a 2 horas de Islamabad e, se está bem aqui, estamos dentro do governo. O chefe da polícia de Karachi é amigo. Estamos em casa no Paquistão.”

Fotia afirma que estava melhor ali do que na Itália. “O papa muçulmano é nosso amigo. Ele foi o meu hóspede em Milão. E tem 10 milhões de seguidores.”

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Segundo os procuradores italianos, o mafioso estaria se referindo a um ministro do governo paquistanês, líder político da região do Peshwar, na divisa com o Afeganistão. “Ele é de uma das dez famílias mais ricas e mais fortes do mundo. E você deve saber que estamos ligados”, escreve o mafioso. O Estadão procurou a embaixada do Paquistão, mas não obteve retorno.

A negociação se transfere do Rio para São Paulo: mercadoria brilhante

Em 8 de fevereiro, a negociação avança e os compradores exibem a cocaína aos italianos. “Daqui a dois ou três dias, Flamengo me dará a lista das armas e os dados do navio que sairá do Rio para o Paquistão. Me fez ver a mercadoria. De alta qualidade. Brilhante. É boa”, escreve Gligora.

Iam pagar € 5,3 mil pelo quilo da cocaína. Na Europa, Rocco acreditava que a droga podia atingir € 26 mil o quilo. Flamengo era assessorado por outro bandido, que falava um pouco de italiano.

Após mais um encontro, Gligora dizia que os compradores das armas eram “guerrilheiros combatentes, mas querem trabalhar para nós”. O mafioso tinha receio de se encontrar com os traficantes brasileiros, a quem considerava “pessoas perigosas”. Durante os contatos, demonstrou estar descontente com a demora dos brasileiros. “Já me encheu o saco. Mando ele (Flamengo) se f... e me mando daqui.”

A ficha de Rocco Morabito na polícia italiana: chefão mafioso foi preso no Brasil em 2021 e extraditado para a Itália Foto: Reprodução/Estadão

Até que, em 13 de fevereiro, Flamengo lhe manda fotos dos modelos de armas que desejava. Flamengo seria o encarregado pelo negócio, mas obedecia a outro traficante, identificado como Poiseidon, que tinha como base a cidade de São Paulo, onde mantinha um depósito de cocaína e um laboratório.

Uma das hipóteses é de que Poseidon seria Tuta. “É muito poderoso. Certamente você o conhece”, disse Gligora para Rocco. Nas conversas, surge o nome de Vincenzo Paquino, que também operava no Brasil para a ‘Ndrangheta.

Combinaram que Francesco Gligora pegaria um avião e Poseidon mandaria uma emissário apanhá-lo no aeroporto. A cocaína sairia de Santos e seria entregue em Gioia Tauro. Ao mesmo tempo, Fotia mandava a Morabito do Paquistão fotos dos kalashnikov. Os paquistaneses diziam ter 400 unidades para pronta entrega. Uma empresa brasileira faria a importação ao preço de US$ 300 a US$ 1 mil, dependendo da origem da arma.

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‘Tem mercadoria em São Paulo’

Os dados da procuradoria de Reggio Calabria sobre a negociação param em 8 de março, quando o sistema Sky ECC foi derrubado pela polícia francesa. Gligora permaneceu no Brasil até 21 de março, quando viajou para a Suíça e, depois, para Malta.

A procuradoria depois localizou Fotia na região de Gênova, onde teria se encontrado com os paquistaneses. Com a delação de Pasquino, procuradores italianos e brasileiros esperam descobrir a identidade dos brasileiros que receberam as armas e qual o destino final dos fuzis.

Mensagens trocadas entre mafiosos: fotos de armas exibidas pelos criminosos brasileiros para servir de exemplo do que estavam querendo comprar Foto: Reprodução/Estadão

Os carregamentos de cocaína que eles enviavam para a Itália não eram nunca inferiores a 50 quilos. A droga chegava sempre em contêineres enviados a Gioia Tauro. Ali, Rocco Morabito e Vincenzo Pasquino eram auxiliados por Carmelo Morabito e Bartolo Bruzzaniti, que cuidavam do esquema para recuperar a droga nos navios e ficavam com 10% da mercadoria. A reportagem não localizou as defesas de Bruzzaniti e de Pasquino.

Em outubro de 2019, um dos carregamentos enviados, com 200 quilos de cocaína, foi apreendido pela polícia fazendária italiana. Vinha de Itapoá (SC). Outros 450 quilos foram apreendidos pela Receita Federal no Porto de Paranaguá (PR).

A sequência de apreensões despertou a desconfiança dos mafiosos, que passaram exigir completo segredo sobre a próxima carga. O carregamento de 181 quilos de cocaína foi escondido em um contêiner com frango congelado, que partiu de Santa Catarina para a Europa, mas acabou também apreendido pela Receita Federal e pela Polícia Federal.

Por fim, os investigadores registraram ainda um carregamento de 660 quilos enviado por Morabito à Itália com ajuda de albaneses. Um grupo deles era muito próximo de Pasquino em São Paulo. Eles tiveram seus passos seguidos pelo Departamento de Narcóticos (Denarc), da Polícia Civil paulista. Morabito sempre dizia a seus contatos: “Tem mercadoria em São Paulo.”

Pasquino viveu no Tatuapé e foi preso em flat na Paraíba

Pasquino veio para o Brasil em 2017, para trabalhar com o envio de drogas para a Itália. Primeiro viveu no Paraná e se mudou para a capital paulista em 2019 - foi morar no Tatuapé, na zona leste.

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É ali que boa parte da cúpula do PCC comprou dezenas de imóveis e levava vida de luxo. Era também onde morava Antonio Vinicius Gritzbach, empresário que delatou esquemas do PCC e foi assassinado no dia 8 no Aeroporto de Guarulhos, na Grande São Paulo.

Pasquino era um dos responsáveis pela logística do tráfico internacional. Em 2021, foi preso em um flat em João Pessoa, junto de outro suspeito de integrar a máfia. Foi extraditado somente neste ano.

É raro um chefe ‘Ndrangheta delatar. A organização é fundada nos vínculos familiares dos clãs mafiosos, o que a manteve por décadas imune às tentativas do Estado italiano de romper a lei do silêncio, a omertà, em torno de suas atividades.

Pasquino promete ainda entregar às autoridades o mapa das principais rotas internacionais da droga e seus contatos com narcotraficantes turcos e operadores chineses ligados à lavagem de dinheiro.

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