RIO - O número de mortos durante operações policiais no conjunto de favelas da Maré, na zona norte do Rio, em 2022 foi 145% maior do que no ano anterior: foram 27 - muitos cadáveres tinham sinais de tortura e execução, segundo denúncias da comunidade-, ante 11 em 2021. Em 2020, os números fora ainda menores: houve cinco mortos em ações de segurança. Ao todo, 39 pessoas morreram em decorrência de violência armada em 2022 no complexo. Doze foram vítimas de confrontos entre grupos criminosos rivais. As informações constam da 7ª edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, lançado nesta segunda-feira, 13, pela ONG Redes da Maré.
A Maré abriga 140 mil moradores distribuídos por 16 comunidades situadas à margem da Baía de Guanabara. Fica também perto de algumas das principais vias expressas da cidade: Avenida Brasil, Linha Amarela e Linha Vermelha, além da Transcarioca. A sequência de favelas se estende à margem da Avenida Brasil, na direção Centro-zona norte, da sede da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) até a Penha, passando pela entrada para o Aeroporto Internacional do Galeão. Com base em uma rede de colaboradores que em 2022 reuniu 197 moradores e 21 organizações sociais, a ONG Redes da Maré recolhe e confirma informações relativas às rotinas no conjunto de favelas.
O relatório afirma que ocorreram 27 operações policiais e 8 confrontos entre grupos criminosos rivais na Maré ao longo de 2022. Por causa desses episódios, as escolas do conjunto de favelas ficaram 15 dias fechadas, enquanto as unidades de saúde pararam por 19 dias. Dos 39 mortos com uso de arma de fogo, 38 eram homens e havia uma mulher. Desse total, 19 vítimas eram pretas; 9, pardas; 7, brancas; e sobre 4 não há informações. Treze tinham entre 19 e 29 anos de idade.
Segundo a ONG, das 27 mortes registradas durante operações policiais, em mais de 20 houve o que a Redes considerou indícios de execução pelos agentes do Estado. Teriam sido mortas pessoas que já haviam se rendido e estavam desarmadas.
Dois episódios relatados pelo boletim são especialmente assustadores. Um aconteceu em 26 de setembro. Moradores da Baixa do Sapateiro pediram ajuda à equipe da Redes da Maré. Relataram que, durante uma operação policial na região, uma pessoa entrou em uma casa em que havia 19 pessoas, dominou o dono do imóvel e passou a anunciar, aos gritos, que queria se render e não ser executado. Agentes do Batalhão de Operações Especiais (Bope), tropa de elite da Polícia Militar, cercaram a casa, e o dono foi libertado.
“As 19 pessoas restantes ficaram no domicílio em cárcere privado por cerca de três horas. Esse fato exigiu dos profissionais da Redes da Maré uma longa mediação com os agentes de segurança pública com as lideranças de associações de moradores e os muitos moradores que se juntaram nas redondezas querendo entender o que os policiais iriam fazer mantendo esse grupo recluso. Os agentes de segurança fizeram ameaças e não se mostraram abertos ao diálogo, impedindo qualquer aproximação ao local”, relata o boletim divulgado nesta segunda-feira.
O relatório prossegue, com mais detalhes. “De acordo com um levantamento in loco realizado pelo ‘De Olho na Maré’, 17 [pessoas] foram presas e duas morreram. Ao se retirar da casa, os policiais deixaram para trás instrumentos de tortura como alicate e choque elétrico”, registra o texto. “Os moradores descrevem como um dos policiais disse que escolheria duas pessoas para morrer. O agente teria apontado para os dois escolhidos, levado um deles para o banheiro e o executado. O segundo escolhido teria tentado fugir se jogando do terraço, momento em que também foi executado com um tiro na cabeça”, conclui o relatório.
O segundo episódio aconteceu dois meses depois, em 25 de novembro. Moradores relataram à Redes da Maré que três jovens foram presos dentro de uma casa na Favela Nova Holanda e torturados por PMs do Batalhão de Ações com Cães (BAC). Os policiais retiraram os três da casa e informaram que os levariam para um hospital, sem dizer qual, segundo o relatório. Familiares do trio e integrantes do Redes da Maré fizeram buscas em unidades de saúde, no Instituto Médico-Legal e em delegacias da região, sem localizá-los. Mais tarde, uma foto de um dos três jovens - morto- começou a circular pelas redes sociais. Logo, chegou ao conhecimento da família dele. Segundo o relatório, os três foram executados.
“O morador da favela quer ter direito a viver”, resume Liliane Santos, coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública da Redes da Maré. “Para que esse direito seja respeitado, temos de denunciar a situação, todas as ilegalidades praticadas. A participação do Ministério Público e do sistema judicial também é fundamental”, conclui.
Polícia Militar
Questionada sobre esses episódios, a Secretaria Estadual de Polícia Militar (SEPM) afirmou, em nota, que “o comando da SEPM não tolera possíveis cometimentos de abusos por parte dos seus entes, apurando com rigor fatos nesse sentido quando relatados”. “A Corregedoria da corporação está ao dispor do cidadão para a formalização destas denúncias através do telefone (21) 2725-9098 ou ainda pelo e-mail denuncia@cintpm.rj.gov.br. O anonimato é garantido.” A pasta não se pronunciou especificamente sobre os dois casos descritos.
Sobre mortes e outros problemas registrados durante as operações realizadas pela Polícia Militar na Maré, a SEPM afirmou que “as ações da corporação são precedidas de planejamento prévio, sendo desencadeadas dentro de protocolos técnicos e do previsto na legislação vigente”.
Ministro
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flavio Dino, visitou a Maré nesta segunda-feira, 13. Ele se reuniu com lideranças e organizações locais, ouviu relatos sobre a violência armada na comunidade e recebeu uma carta com reivindicações. Entre elas, o respeito, pelas autoridades, durante operações policiais, das determinações do Supremo Tribunal Federal. (STF). Dino conheceu ainda os dados do 7º edição do Boletim Direito à Segurança Pública da Maré que, afirmou, serão integrados aos registros do ministério.
“A minha presença hoje na Maré visa fazer um processo de escuta, de oitiva, de aprendizado, inclusive com este valiosíssimo processo de produção de dados e evidências, que é o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré produzido pela Redes da Maré”, declarou. ““Os dados do boletim estão sendo incorporados ao patrimônio do Ministério da Justiça e Segurança Pública porque só é possível executar ações eficientes e corretas ouvindo a sociedade. O boletim é uma espécie de mapa que vai nos ajudar no caminho de combate à violência e de implementação de uma cultura plena da paz e dos direitos humanos no Brasil.” COLABOROU ROBERTA JANSEN
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