Crônica, política e derivações

Esqueçam a resiliência!

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Esqueçam a resiliência!

"Reconhece a queda e não desanima, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima"

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Paulo Vanzolini

Segundo o dicionário de Oxford, a primeira acepção da palavra "resiliência" é "propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica." Oxford Dictionary.

Alguns termos e palavras entram no glossário cotidiano, afinal, como afirmam, a língua é viva. Entretanto, algumas destas palavras incomodam. Não apenas pela imprecisão, e abrangência indevida. Pode ser apenas uma idiossincrasia de escritor, mas o incomodo é porque se uma palavra entra na moda como uma distorção e ela é incorporada como um conceito inapropriado, a linguagem se descaracteriza. É certamente o caso da palavra "resiliência".

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Em primeiro lugar porque "resiliência" é um termo da física, tardiamente adotado pela psicologia. Vale dizer, como já vimos acima na clássica definição do Oxford Dictionary, ela traduz um conceito que se refere primordialmente à matéria.  Um fio, a borracha, vidros metálicos, até mesmo o aço submetido a um torno mecânico (não aquele famoso torneiro mecânico, sem ofensa) pode apresentar a tal propriedade da resiliência.

É um pouco perturbador a forma como o termo resiliência foi incorporado à linguagem, como um jargão de características psicológicas das pessoas. Se quer dizer que somos inquebrantáveis, mente. Se seu significado é que nunca esmorecemos, é pretensioso. Se quer dizer que somos duráveis, engana. Ao contrário da resiliência não voltamos ao estado anterior depois que uma pressão exagerada nos esmaga.

A música do Vanzolini é auto elucidativa: "reconhece a queda". Esse é o ponto fulcral do problema. Reconhecer a queda é aceitar que o trauma não tem volta. Caiu, assume! Admita o tombo. Sem isso, o levantar-se subsequente é uma falsidade.

Fala-se tanto dos negacionistas, mas quando as pessoas se levantam, sem sentir as dores da pancada, trata-se de uma falsa superação. É estoicismo à revelia. É negar o sofrimento. Assim como aqueles que não fazem o devido luto, acabam enlutados através da vida. Claro que temos que sacudir a poeira, porque cada grão serve como um fragmento da memória dos desastres e acidentes de nosso percurso vital. Cada partícula do tombo cai no solo, é o resultado do que acaba de acontecer. A etapa posterior "dar a volta por cima" é apenas um terceiro momento, bem mais difícil e que jamais se dá sem nos transformar.

Vejam, por exemplo, a recente e dramática história dos reféns israelenses que voltaram para casa depois de 480 dias encarcerados sob torturas diárias nos túneis dos inimigos da humanidade. A mídia internacional os considerou "saudáveis". Foram bem tratados pelos fanáticos? Receberam auxílio médico da supostamente isenta entidade conhecida como Cruz Vermelha? Nada disso. Obviamente que não. Sofreram as torturas e sevicias típicas de quem é governado pelo ódio e pela ideologia que prega o extermínio de um povo. Neste caso os judeus. Portanto, me permitam a digressão, mas sempre que escutarem a palavra antissionismo, por gentileza, façam a errata automaticamente: substituam por racismo antissemita, o que eles querem mesmo dizer é que são contra os judeus. É perseguição religiosa na cara dura. Então como, pelos céus, alguém pode estar saudável tendo vivido sob circunstâncias daquele tipo?

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Existem chagas vitais, e há lesões do espírito. Não há, portanto, como estar saudáveis ou serem aclamados como resilientes. Talvez tenham desenvolvido síndrome de Estocolmo, muito provavelmente precisarão de longos períodos de recuperação e cuidado, e, como todos nós, jamais serão os mesmos, jamais retornarão ao status psicológico anterior. Evidentemente eles devem ter reconhecidos seu heroísmo e tenacidade por terem sobrevivido em um meio quase impossível. Não há nada de fortuito em suas sobrevivências. Elas pagarão um preço altíssimo por terem conseguido, assim como a sociedade israelense.

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Voltando à ideia mais genérica: nossos traumas -- segundo Freud, incuráveis-- são, de certa forma, permanentes, e em certa medida insuperáveis, mesmo quando conseguimos atribuir a eles um novo significado.

Deste modo, toda tentativa de imputar à palavra resiliência uma equivalência à resistência, fibra, couro grosso é indevida. Somos seres friáveis, isto é, sangramos. Isto basta para entender quão não resilientes somos. As experiências traumáticas ou impactantes nos deformam e jamais voltaremos a ser quem éramos.

Sangramos e sobrevivemos porque, de algum modo, temos alguma reserva de fé. A fé, ou, como alguns preferem, a determinação. Já outros escolhem nomear como a convicção da esperança. Então de onde vem a misteriosa esperança? Difícil dizer, mas decerto ela é contraintuitiva, ilógica e irracional. E é uma esperança impura, pois convive com a aflição, com a dúvida, com o sofrimento mental e a ambivalência.

Diante da admissão de tamanho do sofrimento humano a bizarra permanência desta inusitada esperança, é, agora sim já podemos revelar, um atributo que podemos classificar como não natural.

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Agora já podemos chamar pelo nome apropriado: a convicção da esperança é sobrenatural.

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