Nostalgias antecipadas, ou, a Inesperada ubiquidade.
"A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente"
Albert Einstein.
Encontro-me em uma casa aleatoriamente alugada através de um site. Está localizada dentro de uma reserva da mata atlântica, quase na divisa com o Estado do Rio de Janeiro. Por acaso, coincidência ou manifestação de sincronicidade - descubro, perplexo, que conhecia o proprietário. Contudo, o mais curioso é que, mesmo antes de saber do fato, fui reconhecendo sinais e símbolos familiares espalhados pelo lugar. Pois descubro que o sujeito de vaga lembrança, muito afável e simpático, sempre sorridente e, de alguma forma solicito, falecera faz algum tempo.
Ao andar pelo local passei a imagina-lo, identifica-lo e enxergá-lo e as suas marcas em quase todos os detalhes da residência. Havia uma curiosa vivacidade, quase palpável, nas minhas visualizações. O que estava sendo apreendido ali? Pude ouvi-lo, comemorando, discutindo, rezando, apontando para o que observava da varanda, mexendo em seu ateliê (seria dele?), lavando as mãos, dançando na sala, jogando com os filhos, talvez fazendo jogos lúdicos durante as caminhadas pela mata, fotografando uma mariposa, rabiscando um organograma para as suas atividades. Finalmente soube dos seus passos através das longas escadarias da casa.
Na verdade, fui tomado pela ideia de que, talvez, ele pudesse estar vivendo simultaneamente ali, em uma existência paralela à nossa. Segundo os físicos, o que antes pareceria loucura ou desvario espiritual, tem alguma plausibilidade. Segundo Bradford Skow, professor do MIT, uma vez que sob a perspectiva da teoria geral da relatividade, o tempo, assim como o espaço, são dimensões, poder-se-ia viver em simultaneidade com outros ciclos temporais.
Fui adiante, e me perguntei, teria ele antevisto o mundo do qual não faria mais parte? Ou será que ainda faz?
O fato é que nossa memória é um inesgotável reservatório de perspectivas especulativas. Foi um passo para impulsionar meu exercício, e passar a imaginar detalhes de sua família. Evidente e previsivelmente um fio condutor acabou me trazendo até os meus familiares. Não, não são apenas saudades futuras do ainda não vivenciado no passado: estamos falando de percepções de um futuro ainda ignorado que passa a ser prospectado a partir de algum elemento capturado da realidade.
Eu as nomeei como nostalgias antecipadas. Quem são elas? O que será quando não estivermos mais perto daqueles que estão por perto? Quem cuidará de tudo? Quem organizará o ritmo das viagens? O que conversarão sem que eu possa contesta-los? Como será quando os filhos, que nos visitam em breves retornos dos seus exílios voluntários, vierem? Quem impulsionará as alegorias, os chistes, as ironias fonéticas da linguagem?
Julgamo-nos imprescindíveis. O tempo é o mais indiscreto explicitador de realidades: fica cada vez mais auto evidente quão não essenciais somos.
Entretanto, termo-nos como imprescindíveis, entre outros mecanismos de defesa, nos ajuda a levantar da cama, especialmente nas manhãs difíceis.
Da varanda de mais de 100 metros de altura deste paraíso que une montanha e mar, posso enxergar a ponta das rochas reluzentes. Cobertas de espuma salina e submersas pelas ondas em ciclos de vai-e-vem permanentes. Diante do panorama posso sequer cogitar que não somos mesmo as efemérides mais abstratas deste mundo quando uma simples mesa pode nos sobrevir? Vale dizer, em contraste com a matéria, que dura indefinidamente, nós somos os passageiros intrusos.
Foi o que a inesperada ubiquidade fez surgir: estaríamos buscando sentido sem considerar que talvez o sentido esteja em algum aspecto imanente? Que ele esteja e seja parte de nós mesmos, e que inclusive dure, por exemplo, apenas o instante fugaz no qual esta meditação esteja sendo feita?
E se apenas tivermos o momento, e todo o resto especulação? Ou se toda a busca por sentido não fizer sentido? A não ser saber que sobrevivemos exatamente pela aspiração por achar que precisamos encontrar um sentido?
Quando penso em nostalgias antecipadas, evito viver no agora. E aí está um obstáculo significativo ao cultivo da imperturbabilidade. Se sei que desaparecerei, posso sonhar. Mas, se nego, encontro-me fixado no tempo. Como manter-se imperturbável? É evidente que as tempestades políticas, a hegemonia das relações instrumentais entre as pessoas, a ansiosa busca pelas glórias do mundo e outras efemérides virtuais são obstáculos às tentativas de manter-se incólume.
E se não houver uma finalidade última, valeríamos menos?
Foi quando um grande pássaro de bico azul, olhos reluzentes com uma faixa laranja que risca o topo da cabeça até o fim da cauda, pousou na ponta de uma rocha vulcânica. Tento identificá-lo, tudo que concluo é que ele está, como eu, observando o mar. Aquilo é tudo, o presente contínuo. E ali, exatamente ali, evoco a síntese: e se a vida não passar de puro acontecimento? Quando a natureza é desmitologizada, só há constatação das presenças, acontecimentos autônomos que dispensam observadores, mas que paradoxalmente, deles dependem.
Se houver um ideal de saúde psíquica, ela envolve ingressar na natureza do tempo, e ter presente o hoje, aí. Então reformulo: não é viável antecipar nostalgias, elas só podem ser vividas uma única vez. E sua duração, será sempre extinta no instantâneo.
O transcendente coexiste, em outra unidade temporal. Entretanto ele pode esperar: uma dimensão por vez.
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