Tudo começa numa família em cacos, que mora nos bairros pobres da periferia da capital e das cidades da Grande São Paulo e Baixada Santista. Dali é que sai a maioria das crianças e adolescentes que chegam às ruas do centro de São Paulo e têm a cracolândia como fim da linha. A conclusão está no levantamento com 335 crianças e adolescentes que em junho foram atendidos no Projeto Quixote. Entre os entrevistados, 44% vieram das periferias da capital e 26% de bairros pobres de outras cidades vizinhas. A maior parte é formada por jovens que ainda estão nas ruas, mas também participaram da pesquisa aqueles que já voltaram a viver com a família ou que estão em processo de reconstrução dos antigos laços e hoje são atendidos pelo Quixote no centro. Na avaliação dos pesquisadores, os números ajudam a compreender algo testemunhado no contato cotidiano com os consumidores da droga. Na cracolândia, além do consumo, os viciados buscam nova identidade e laços sociais, levando uma vida que, por pior que pareça, supera a que deixaram para trás. "A cracolândia representa o exílio e por isso é mais do que um espaço físico. É também um espaço simbólico. Para tirar o jovem da rua, além da desintoxicação, é preciso reforçar os laços que foram desatados na vida que ele deixou para trás", analisa o psiquiatra Auro Lesher, fundador do Projeto Quixote, organização que atua em parceria com os Centros de Referência de Assistência Social (Cras). Conhecendo a origem dos viciados, na avaliação dos pesquisadores fica claro o tamanho do desafio que a cracolândia representa. Marcelo, de 16 anos, começou a sair de casa no Parque Edu Chaves, na zona norte, quando tinha 9 anos. Ele acompanhava um amigo mais velho, filho de um traficante que morava em um conjunto habitacional vizinho. Temporão em uma família de cinco irmãos, acabou morando na rua por quatro anos, dois deles na cracolândia. O processo de retorno à família começou em 2006, quando o primeiro contato foi feito com educadores do Quixote. O estabelecimento de um vínculo de confiança com o consumidor da droga é sempre o primeiro passo para o retorno à família. Marcelo estava havia seis meses sem voltar para casa e decidiu reaparecer depois do primeiro banho. Tamanha era a sujeira que ele não conseguiu tirar todos os cascões do rosto. Conforme os laços com a mãe voltaram a se fortalecer, Marcelo desistiu das ruas. Como ocorre com a maioria, não foi necessária a internação em hospital. Matriculado no 4º ano do ensino fundamental, onde faz supletivo, ele já está há um ano e meio em casa. A família ainda é acompanhada por educadores, que a orientam em questões emergenciais. "O trabalho e o desafio nunca acabam", explica Anita Oliveira Silva, de 55 anos, mãe de Marcelo. DESAFIOS Em São Paulo, a rede assistencial do centro, que envolve entidades do Município, Estado, União e organizações não-governamentais, passou a se encontrar quinzenalmente para discutir e compartilhar casos-desafios ligados ao crack. Mais do que uma questão de saúde pública ou um problema bioquímico, o mais complicado é reconstruir o ambiente despedaçado que foi abandonado pelo usuário. A menina Jéssica, de 12 anos, que migrou do Jardim Iporanga, na zona sul, para as ruas do centro, está entre esses casos-desafios. Jéssica tem cinco irmãos. Perdeu o pai assassinado com meses de vida e foi abrigada pela primeira vez em uma instituição aos 8 meses. A mãe bebia e não conseguia cuidar da filha. No começo de 2007, os educadores iniciaram contatos com Jéssica. A menina consumia crack e já havia sofrido uma série de abusos nas ruas. Da primeira internação, em Bragança Paulista, no interior paulista, Jéssica fugiu a pé. Ela ainda ficou dois anos internada em um abrigo, período no qual a mãe, que havia se tornado evangélica e parado de beber, não a procurou. De volta às ruas, no fim do ano passado, Jéssica perdeu um pedaço do dedo porque estava com osteomielite e registrou HPV, doença sexualmente transmissível. Apesar dos percalços, atualmente Jéssica quer sair da rua e os educadores buscam um abrigo para ela ficar. A família ainda a rejeita. O antropólogo Rubens Adorno, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, explica que na cracolândia os usuários constroem uma vida alternativa. "Com o uso da droga, você incorpora uma nova performance social, e é isso que os usuários buscam nesses circuitos do crack. Existe uma estética própria nesse espaço. O comportamento, a roupa, a moral, esses refugiados urbanos conseguem ter uma identidade nesse meio." Se a construção da Nova Luz, anunciada pela Prefeitura, deve evitar a circulação de viciados pela região, por enquanto, a pergunta é quais espaços degradados serão buscados pelos viciados. "Quando os usuários ficavam nas partes degradadas da Luz, o problema era mais escondido. Agora não. Por isso acho que daqui a alguns anos essa sociedade vai cobrar os seus direitos e estimular a discussão", diz o tenente Marco Aurélio Genghini, do 7º Batalhão da PM, que defende mudança de lei para permitir internações compulsórias.
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