Crise na Venezuela faz população de Roraima ter maior alta do Brasil: ‘Quando cheguei, morei na rua’

Estado do Norte vê quantidade de habitantes crescer 41% em 12 anos diante da migração venezuelana. Explosão populacional desafia oferta de serviços públicos

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Foto do author Marcio Dolzan
Por Cyneida Correia e Marcio Dolzan
Atualização:

A população do Estado de Roraima cresceu 41,2% nos últimos 12 anos, de acordo com os dados mais recentes do Censo divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A alta, que fez o total de habitantes pular de 450 mil para 636 mil no período, foi a maior proporcionalmente entre todos os Estados brasileiros. Um fator foi preponderante para essa tendência: a migração venezuelana.

A crise que afetou o país vizinho levou milhares de venezuelanos a deixarem sua terra natal em busca de melhores condições de vida em outros pontos do continente. No Brasil, em razão da proximidade geográfica, o Estado mais afetado por esse deslocamento foi Roraima, que passou a ver os estrangeiros nas ruas de Pacaraima, cidade mais próxima da fronteira, e da capital Boa Vista.

A crise que afetou o país vizinho levou milhares de venezuelanos a deixarem sua terra natal em busca de melhores condições de vida em outros pontos do continente Foto: Bruno Kelly/Reuters - 24/2/2019

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A migração é marcada pelo contexto de pobreza e precariedade de serviços na Venezuela, o que demandou mais serviços de apoio em território brasileiro. De acordo com dados do Ministério da Justiça, entre 2017 e 2022 702 mil venezuelanos entraram no Brasil por Roraima, Amazonas (via aérea) e São Paulo (via aérea). Destes, 325,7 mil permaneceram em território brasileiro.

As entradas foram mais volumosas sobretudo nos anos de 2018 e 2019, quando superaram os 220 mil registros anuais. Em 2021, o número ficou em 62 mil.

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Jose Leonardo Villalobos Ramos, de 26 anos, veio da cidade de Tigre, no Estado de Anzoategui na Venezuela. De morador de rua, virou estudante de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e agora trabalha com ajuda humanitária a outros venezuelanos.

“Quando cheguei, não tinha dinheiro algum e não conhecia ninguém, por isso morei na rua. Foi um período muito desafiador, mas eu tinha esperança de que aqui teria a chance de recomeçar”, conta Jose.

Jose conseguiu ingressar na universidade e construir uma nova vida. “Roraima me deu a oportunidade de continuar meus estudos e de trabalhar para conquistar meus objetivos. Me sinto grato, pois quando cheguei aqui não conhecia ninguém, fui morador de rua até conseguir me regularizar. Não tinha luz nem internet e estudava na rua, pelo celular. Hoje estou inserido na cultura brasileira, na música, ouço forró e como paçoca” relata.

Ele pesquisa na universidade as mudanças na identidade dos migrantes em Roraima. “Ninguém quer morar na rua, passar por perrengue para tomar banho e lavar roupa, mas faz parte da minha história e do meu crescimento pessoal e acredito que coisas melhores vão vir pra mim.”

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O empresário Wilfredo Millán, um venezuelano de 26 anos que veio acompanhado de sua esposa e dois filhos, encontrou em Roraima não apenas uma nova moradia, mas também um ambiente propício para desenvolver o seu negócio.

Millan trabalhou com serviços gerais e como Uber e aproveitou as oportunidades que surgiram fundando sua própria empresa. Ao longo dos anos, expandiu suas atividades e hoje emprega seis pessoas em sua empresa de exportação e importação de gêneros alimentícios.

“Cheguei em Roraima em 2016 e foi um processo difícil, pois estava no auge da migração. O que acontece é que corri atrás do que queria para minha família e mesmo sem emprego nunca deixei de acreditar e sempre tive um foco de ser empresário. Montei relacionamentos e quando abri minha empresa, fui crescendo e recebi suporte do setor empresarial e hoje me sinto integrado ao Brasil, pois para mim é como minha casa e minha família”, diz.

“Gosto de contar minha história pois ajuda outras pessoas. Eu cheguei sem nada e hoje sou exemplo para meus compatriotas”, acrescenta ele.

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O caminho dos dois, porém, não é replicado para todos que cruzam a fronteira. A capital Boa Vista viu crescer o número de pessoas morando nas ruas sem assistência, o que agravou problemas sociais vistos em diferentes cidades do Estado. A recepção brasileira aos migrantes também não foi homogênea, e o preconceito direcionado aos migrantes cresceu.

Vista aérea mostra lares temporários destinado a refugiados em Boa Vista Foto: Matias Delacroix/AP Photo - 8/4/2023

O empresário do ramo de eletrodomésticos Wagner Santos destacou a dedicação característica de funcionários venezuelanos. No entanto, ele diz enfrentar resistência por parte dos clientes. “O maior desafio enfrentado é a resistência de alguns clientes, que relutam em receber venezuelanos em suas residências.”

Saúde é uma das áreas mais demandadas pela migração

O aumento populacional também representa desafios para o governo e a sociedade de Roraima. A chegada repentina de um grande número de pessoas demandou investimentos em infraestrutura, saúde, educação e segurança, a fim de garantir a integração adequada dos imigrantes.

A saúde é uma das áreas mais demandadas em Roraima. São cerca de 600 venezuelanos atendidos diariamente somente nas unidades de saúde da fronteira. No Hospital Geral de Roraima os atendimentos passaram de 30 para 300. Na maternidade eram 5 partos diários e hoje chegam a 100.

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A enfermeira Vitória Cruz, que atua em postos de saúde, relata o aumento significativo na demanda por serviços de saúde. “A saúde materno-infantil é uma das áreas mais afetadas, com um aumento expressivo na quantidade de consultas para gestantes venezuelanas, assim como atendimentos a diabéticos e hipertensos. A percepção de saúde e doença dos migrantes venezuelanos é diferente da dos brasileiros, o que requer uma abordagem diferenciada no atendimento.”

Vitória atua em um posto de saúde no bairro Paraviana, área nobre da capital Boa Vista, mas explica que no local há duas ocupações de migrantes que vivem em condições sub-humanas longe dos abrigos.

“Tem duas ocupações neste bairro e uma delas tem 39 famílias vivendo em condições péssimas de vida, em locais feitos com tapumes e papelão e muitos vivem em ruas e terrenos ocupados e isso influencia na saúde dessa população, que está sempre precisando de assistência. Sentimos o impacto crescente dessa população que precisa ser atendida também.”

Migrantes atravessam a fronteira da Venezuela com o Brasil para chegar à cidade de Pacaraima Foto: Daniel Teixeira/Estadão - 25-02-2019

Para Américo Lyra, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), o Estado não estava preparado para receber esse grande contingente de imigrantes. E isso teve reflexo rápido, sobretudo na capital, Boa Vista.

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“Além dos serviços, incluindo os públicos, os demais não dão conta. Houve aumento em questões básicas, como no aluguel e no preço dos imóveis e terrenos”, afirma. O professor, no entanto, lembra que não foram apenas refugiados que se mudaram para Roraima; houve também um incremento no público consumidor.

“A chegada dos venezuelanos acarretou, igualmente, em maior entrada de recursos e aquecimento econômico. Pense que organizações internacionais se deslocaram para a cidade (Boa Vista) e, com elas, veio um público consumidor”, pondera.

Roraima cobra mais apoio do governo federal

O governador do Estado, Antonio Denarium (PP), cobrou maior apoio do governo federal nas ações de apoio aos imigrantes. “O governo estadual ainda busca o ressarcimento das despesas junto ao governo federal e até agora não houve um posicionamento definitivo. Crescemos tudo isso e pagamos sozinho o gasto com saúde, educação e segurança. Precisamos ser ajudados pelo Brasil e torcer para que a Venezuela se reencontre e volte a dar dignidade à sua gente”, destacou o governador.

Eduardo Oestreicher, secretário-adjunto de Assuntos Internacionais no governo do Estado de Roraima e presidente da Câmara Brasil-Venezuela, vê melhora nas oportunidades de emprego. “Com o tempo houve abertura de novos mercados e implementação de políticas favoráveis aos negócios, o que ajudou a absorver parte da mão de obra imigrante e impulsionou o desenvolvimento econômico da região.”

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Em março de 2018, o governo federal criou a Operação Acolhida para oferecer assistência emergencial aos refugiados. “Para atender a grande quantidade de migrantes e refugiados, que aguardam a oportunidade de participar do processo de Interiorização ou absorção no mercado local, a Operação Acolhida estabeleceu, na área urbana de Boa Vista, nove abrigos para acolhimento de indígenas e não indígenas. Nestes abrigos, são oferecidos alimentação, proteção, segurança, saúde e atividades sociais e educativas”, detalha a Casa Civil na página oficial da missão.

Questionada pela reportagem nesta segunda-feira, a Casa Civil não apresentou resposta até o momento da publicação.