Sempre achei que, historicamente, a literatura é a melhor arte brasileira. Se você pensar na música dita erudita, por exemplo, vai se lembrar de Carlos Gomes, Villa-Lobos e poucos mais. O teatro seria bem discreto sem Nelson Rodrigues, como a arquitetura sem Oscar Niemeyer. Nas artes visuais é possível citar mais nomes, como Volpi, Iberê ou Goeldi, mas raramente na escala de ambição de seus pares estrangeiros. O cinema teve rompantes, como Nelson Pereira e Glauber Rocha, e só de uns tempos para cá tem uma produção média mais consistente. Apenas na música popular ou, como prefiro, na canção, de Noel Rosa a Chico Buarque, o Brasil tem boa projeção internacional; e talvez ela, como a TV, a publicidade e o jornalismo, se beneficie por ser um caminho mais acessível de $obrevivência para os talentos. Mas das artes mais densas, por assim dizer, a literatura se destaca.
Mesmo assim, depois de passar algumas semanas relendo clássicos brasileiros por motivos que já explico, digo que a literatura brasileira também não tem a grandeza que alguns dizem ter. Eis um dos motivos: fui um dos convidados por uma editora a selecionar "20 ou 30 nomes" de autores nacionais para um livro que está sendo traduzido com uma lista dos 501 maiores escritores da história. Primeiro, usando a memória e olhando de esguelha para as estantes, cheguei a 60, mas confesso que muitos deles não me falam alto; depois cheguei aos 30, com alguma dor no coração por deixar alguns de fora, mas com clareza na cabeça sobre outros critérios que pesaram, como a importância histórica. Jorge Amado, digamos, entrou na minha lista, mas está longe de ser um autor imprescindível ou apaixonante para mim, um texto que eu anseie por reler com frequência. A literatura brasileira que realmente vale a pena não tem 30 nomes.
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É melhor eu parar por aqui, senão vão dizer que sou "exigente demais", "amargo", etc. Veja o espanto com as opiniões literárias de Manuel Bandeira reunidas agora em Crônicas Inéditas II (Cosac Naify), em que critica, por exemplo, Oswald de Andrade, apontando no Serafim Ponte Grande o sarcasmo repetitivo que impede a vitalidade dos personagens, ao contrário do que ocorre em João Miramar. Bandeira dispara para todos os lados: recusa o "sentimentalismo de impressões" do livro de estreia de Marques Rebelo, o qual se vê também em seu melhor romance, A Estrela Sobe, agora reeditado pela José Olympio; destrói, como naquele poema Os Sapos, o parnasianismo de certos autores dados a latinismos e grandiloquências, inclusive o primeiro Vinicius de Moraes; reclama dos poemas arrastados de Claudio Manuel da Costa e palavrosos de Olavo Bilac. Faz, em suma, o que um crítico tem de fazer: "Não havendo choque, não existe necessidade nenhuma de crítica."
Embora elogie esquecidos como Ribeiro Couto e Amando Fontes, como notou Almir Freitas na Bravo!, Bandeira faz um corte na produção - do seu tempo e também anterior - e elege os "happy few": Drummond, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Jorge de Lima. A posteridade costuma ser mais cruel que a maioria dos críticos. Ele próprio, Bandeira, que será o tema da Flip que se inicia nesta semana (aonde vou para compor mesa sobre Euclides da Cunha e conferir outras), não é tudo que os admiradores mais fanáticos dizem. Não é preciso ir tão longe quanto ele, que se dizia um poeta menor, um simples lírico, mas ele também se entrega em muitos momentos ao sentimentalismo e à repetição; e suas melhores criações não estão no patamar de Drummond e João Cabral, não têm aquela condensação de ideias e recursos. Mas obviamente eu o poria numa lista dos dez poetas brasileiros.
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O outro motivo para esta revisão foram duas enquetes que decidi fazer em meu blog, uma sobre as melhores aberturas e outra sobre os melhores fechamentos da literatura brasileira. No momento em que escrevo, quinta-feira, não tabulei os dados ainda. Mas Machado de Assis e Guimarães Rosa, pela ordem, venceram com vantagem, seguidos por Graciliano Ramos. Sim, há grandes livros sem frases iniciais ou mesmo finais especialmente memoráveis - e há livros que começam muito bem, como Macunaíma, de Mario de Andrade, e depois caem na monotonia -, mas como negar a superioridade de Machado e Rosa na construção de cada frase e na arquitetura do conjunto? E olhe que houve muitos votos para autores que merecem mais status e estudo do que recebem, como Raul Pompéia, Rubem Braga, Raduan Nassar, Dalton Trevisan e Otto Lara Resende.
Mais um exemplo da pequena quantidade são antologias como Os Melhores Contos Brasileiros de Todos os Tempos, organizada por Flávio Moreira da Costa (Nova Fronteira). Otto, por exemplo, não está ali, e de Rosa não consta o supremo A Terceira Margem do Rio. Entre os 87 escolhidos, há uma vasta diferença entre os sete de Machado e quase todos os demais, com exceção de Lima Barreto e mais alguns. Como se vê também em antologias de autores contemporâneos, a exemplo do Dicionário Amoroso da Língua Portuguesa ou do número 4 da revista Granta, para não falar de alguns romances que tenho lido, a ficção nacional sempre soa como uma espécie de memória disfarçada, uma crônica rarefeita e emotiva, parasitária de alguma influência mal digerida. Os personagens nunca deixam de ser autobiográficos; o estilo sempre está a reboque de outro. Não se explora a língua nem em seu potencial de pensamento nem de percepção.
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Listas servem apenas como dicas, caso você confie em quem a faça, mas tenho visto algumas tão extensas - como um livro com "1.001 filmes para ver", o que significa ver muita bobagem - que não se justificam. É um critério que vem de fora, numérico, e não estético. Esteticamente não existem 87 bons contos brasileiros! (Acabo de me lembrar de uma declaração radical de Nabokov: "Os únicos livros que interessam no século 20 são Metamorfose, de Kafka, Ulisses, de Joyce, e Em Busca do Tempo Perdido, de Proust - e mesmo assim só os três primeiros volumes!") E, se um autor foi capaz de fazer mais de uma obra-prima, é isto que importa. Como já escrevi, o gênio é um sujeito que fez uma obra de gênio, não é um tipo de pessoa. Na hora de escolher os 15 fechos literários, por exemplo, não pude evitar a inclusão de seis de Machado... e olhe que ainda havia mais opções. Quem mandou ser tão bom?
Por um lado, acho ruim que haja tão poucos autores brasileiros numa Flip; por outro, a melhor maneira de defender a literatura nacional, como mostrou Bandeira, não é passando a mão na cabeça, e sim separando o que há de melhor em uma linhagem para que os contemporâneos se meçam por ela. Acredito que haja pelo menos dez grandes livros para você ir direto ao que de melhor se fez nas letras brasileiras. São eles Brás Cubas e Dom Casmurro, de Machado, Grande Sertão: Veredas, de Rosa, Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, O Ateneu, de Raul Pompéia, Os Sertões, de Euclides da Cunha, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque, São Bernardo, de Graciliano Ramos, e os melhores poemas de Drummond e Cabral. Depois leia os outros de Machado, Rosa e Graciliano. E só então siga adiante.
("Sinopse")
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