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Nabuco inédito

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Por danielpiza
Atualização:

Numa carta de 31 de maio de 1883, Joaquim Nabuco (1849-1910) escreveu que tinha prometido fazer da vida um protesto contra a escravidão, "nada querendo dela, esperando como os escravos o meu dia". O dia da Abolição veio, quase cinco anos depois, e daqui a quatro dias o que vem é o Ano Joaquim Nabuco, uma série de eventos e lançamentos para celebrar o escritor, jornalista, advogado, diplomata e líder mais hábil e vistoso da campanha abolicionista. Cem anos depois de sua morte, ele ainda é um personagem pouco publicado e pouco estudado em contraste com sua importância - ou com a de outros recentes homenageados, Machado de Assis (2008) e Euclides da Cunha (2009), dois amigos e companheiros da Academia Brasileira de Letras.

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Nabuco ainda está à espera do dia em que toda sua obra estará integralmente disponível nas livrarias. A carta citada, por exemplo, permanece inédita em livro e foi encontrada pelo Estado ao lado de muitas outras nos arquivos da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), no Recife, responsável pela programação do ano. É endereçada ao Dr. Ubaldino Amaral, que havia criticado o fato de Nabuco não viver no Brasil àquela altura, depois de ter deflagrado - na companhia de André Rebouças, José do Patrocínio e outros - o movimento pela Abolição em 1880, com a fundação da Sociedade Abolicionista Brasileira. Nabuco explica a Amaral que estava no exterior "trabalhando para viver" e propagando suas ideias, elaborando inclusive os textos do livro que vai intitular Abolicionismo. Também reafirma a importância de manter sua independência política e financeira, em nome da causa maior.

Outra carta inédita que a Fundaj digitaliza no momento, de 15 de fevereiro de 1888, ano em que a Lei Áurea é finalmente assinada pela princesa Isabel, confirma o papel de Nabuco na articulação internacional do movimento: ali ele conta ao senador francês Victor Schoelcher que havia estado pessoalmente com o Papa Leão XIII e que contava com a opinião pública francesa para pressionar o Brasil a decretar o fim da escravidão. Como sempre em Nabuco, as cartas são muito interessantes porque investidas de sua determinação histórica e de sua prosa estilosa. "A nação quer se purgar de sua vergonha e de seu crime", escreve ao parlamentar francês. E associa a Abolição brasileira de 1888 à Revolução Francesa de 1789: para Nabuco, o fim da escravidão não era apenas a extinção de uma segregação racial, mas também a oportunidade de dar aos brasileiros os princípios de cidadania.

Pouco depois, porém, seus medos recrudescem. Em outra carta inédita, de 2 de janeiro de 1889, Nabuco, que se diz um "liberal monárquico", critica os republicanos por seu ódio racial, pois "falam abertamente em matar negros como se matam cães" e parecem querer uma guerra civil no Brasil pós-abolição. Nabuco, em realidade, esperava que a princesa Isabel levasse o Brasil para o Terceiro Reinado, sucedendo a Dom Pedro II, e não admitia que os brasileiros pudessem querer a república em lugar da monarquia. De fato, os primeiros anos da República pareceriam confirmar parte de seus receios, pelo autoritarismo militar; ao mesmo tempo, não trouxeram esse velho temor dos conservadores brasileiros, a guerra civil e o esfacelamento do país em distintas nações, como havia ocorrido nos vizinhos que adotaram o regime.

O quarto documento obtido nos arquivos pernambucanos é um manuscrito de um discurso feito na Argentina. Não está datado, mas é certamente posterior a 1888, porque nele Nabuco se refere à vitória sobre o "feudalismo escravista" e afirma que a causa abolicionista faz parte de uma utopia, a "paz americana", celebrando assim o ânimo futurista do Novo Mundo. Aqui já temos o estado de espírito do Nabuco tardio, que, graças ao Barão do Rio Branco, se reconciliou com o governo e assumiu a vaga de diplomata em Washington em 1905. Também se reconciliou com suas raízes religiosas, que datam de sua infância no Engenho de Massangana, em Cabo de Santo Agostinho, a 48 km de Recife, engenho que está em reforma para o ano comemorativo e foi visitado pelo Estado.

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Das mais de 700 cartas escritas por Nabuco, cerca de 450 foram coligidas por sua filha Carolina e publicadas em dois dos 14 volumes de suas Obras Completas (não tão completas assim), publicadas pela Ipê em 1949. Entre outros volumes de cartas de Nabuco estão as que trocou com Machado de Assis, prefaciadas por Graça Aranha (recentemente reeditadas pela editora Topbooks), e com os abolicionistas britânicos, organizadas por Leslie Bethell (mesma editora). Há, portanto, muitas dezenas de cartas inéditas em livro. Felizmente, boa parte estará disponível em acervo digital em 2010. O próprio Nabuco gostaria de ver esse dia chegar, graças à liberdade de uma ideia chamada internet.

INÉDITOS

1. 'FAZENDO DA MINHA VIDA TODA UM PROTESTO'

LONDRES, 31 DE MAIO DE 1883

Meu caro Dr. Ubaldino Amaral,

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Li a Gazeta da Tarde de 24 de abril com toda a atenção devida a observações suas sobre um correligionário político (digo correligionário porque ambos subordinamos tudo ao Abolicionismo e nesse sentido fizemos dele uma religião política). Sinto que as suas conclusões a respeito da minha ausência do Brasil sejam diversas das minhas.

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Com a minha organização, estou certo de que não poderia fazer nada pela nossa causa se não me sentisse bem comigo mesmo, e, talvez erradamente (oxalá o fosse - e o seja - porque a convicção ainda continua e ainda é determinante da minha conduta), cheguei a convencer-me de que se me não oferecia em luta com a Escravidão e toda a sua clientela e todo o seu poderio nenhum meio de vida independente, compatível com meus precedentes políticos e a continuação do meu posto de combate, dentro do país. É claro que isso pode mudar de um dia para o outro, mas até hoje não mudou.

Prometi servir à causa da emancipação de dois modos: 1º fazendo da minha vida toda um protesto contra a escravidão, nada querendo dela, esperando como os escravos o meu dia; 2º dedicando o meu trabalha à tarefa de envergonhar os meus compatriotas de aceitarem ainda neste período da história aquela pirataria.

Para desempenhar-me do primeiro desses compromissos, a ausência do país estando, como estou, trabalhando para viver e não gozando no estrangeiro, é talvez o melhor meio. Para desempenhar-me do segundo continuo a fazer quanto posso (mais do que faria se estivesse aí trabalhando pela vida) para propagar entre os meus compatriotas as nossas ideias.

Apesar de ausente, fui eu que dei o grito de alarme contra o tráfico de ingênuos em Valença, e neste momento estou concluindo a impressão de um volume sobre o Abolicionismo, de cuja distribuição entre o povo brasileiro muito espero. Por esse mesmo motivo não faço tão completa quanto pedia a resposta que lhe devo.

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Fique certo de que o meu mais ardente desejo é viver no meu país, onde está o meu futuro e o meu campo de ação, mas que infelizmente não penso dar passo algum sem que seja irrefletido. Pela emancipação deixei a carreira diplomática e inutilizei-me na carreira política. Hoje estou ganhando uma pequena subsistência na imprensa e na advocacia, e não posso lançar-me de novo ao desconhecido que pode ser a dívida, isto é, a prisão do espírito, ou a dependência, ou a necessidade, ou o abatimento moral, exatamente porque tudo isso seria prejudicial não só a mim como à abolição. Compreendo a sua censura, mas não creio que a mereça como se me achasse ausente sem necessidade.

Pus nesta carta a nota de particular somente para evitar a impressão in integrum, mas pode referir-se a ela como queira.

Em todo o caso esse incidente não deixa no meu espírito uma nuvem sequer.

Creia-me, sempre, meu caro Dr. Ubaldino,

Seu amigo, patrício e correligionário,

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Joaquim Nabuco.

2. 'A NAÇÃO QUER SE PURGAR DE SUA VERGONHA'

BERNA, 15 DE FEVEREIRO DE 1888 (EM FRANCÊS)

Sr. Senador (Victor Schoelcher),

Se demorei para dar ao sr. notícias da missão que me levou a Roma, é porque houve um grande intervalo entre a audiência que me cedeu o Cardeal Secretário de Estado e aquela do Santo Papa, da qual dependi todo o resultado da minha missão a Roma.

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Estou feliz de lhe informar que o Papa me declarou, repetindo mais de uma vez, que vai endereçar uma Encíclica aos nossos bispos sobre o tema da escravidão e falará no sentido em que eu mesmo me enderecei a ele. Uma tal intervenção junto aos padres católicos não pode determinar senão um grande movimento em favor dos escravos. Não existe outro homem no mundo, meu sr., que levou à raça negra o amor e o interesse fraternal que o sr. levou; receba esta notícia no espírito de reconhecimento e de gratidão com o qual os infelizes escravos certamente a recebem eles mesmos.

Conto estar amanhã em Paris. O sr. poderia me reservar um momento de conversa para depois de amanhã, quarta-feira? Meu endereço é o mesmo, 56 Boulevard St. Michel, na casa de Madame de Rio Branco. Agora a questão para mim é obter uma manifestação da opinião francesa em apoio ao movimento nacional brasileiro, cujo valor moral seja tal que todos os amigos da França em nosso país sejam tão tocados quanto os católicos pelo pronunciamento do Papa. Infelizmente não tenho nada mais que dois dias para obter um resultado tão grande, o qual não poderia ter outro iniciador além do sr., o melhor amigo que a raça negra jamais teve.

O sr. talvez se lembre que os primeiro passos do governo brasileiro em favor dos escravos foram inspirados por uma carta dos abolicionistas franceses de Paris, em 1865, ao Imperador do Brasil. O Imperador, muito liberal ele mesmo, à medida que um monarca pode sê-lo, é muito sensível à opinião do mundo; ao receber aquela carta em que os Guizot, os Laboulaye, os Cochui (?) etc. faziam apelos à sua honestidade, determinou uma iniciativa do governo em favor dos escravos que foi considerada quase revolucionária. O que se seguiu cinco anos depois foi a lei de 1871 que o sr. conhece muito bem, uma lei que os padres receberam como um gesto de traição e de usurpação da monarquia, mas que até então não tocava na propriedade deles, e a duras penas declarou de condição livre os filhos de mães escravas nascidos depois de sua promulgação e dedicados ao cativeiro de fato até a idade de 21 anos. Portanto a lei foi o primeiro golpe, o primeiro conflito, que deveria ter posto em crise perpétua a instituição da escravatura.

Bem, neste momento temos no Brasil uma outra lei que fixa um prazo de 14 anos, a partir de 1885, à escravidão, e a nação inteira quer acabar com ela no espaço de um ou dois anos. Os padres brasileiros, caso único na história, emanciparam seus escravos às centenas e alguns aos milhares e puderam dizer que os que não os fizeram foi porque tinham seus escravos hipotecados com suas terras. Pode-se calcular em centenas de milhões de francos o valor dessas alforrias gratuitas. A nação quer se purgar de sua vergonha e de seu crime.

O Parlamento deve votar neste ano sua lei final. Há apenas um pequeno partido no poder com razões políticas para se opor ao movimento geral que tanto honra o país. Este é o momento em que todos que têm a causa da humanidade no coração deveriam, na França, nos ajudar moralmente com seu interesse e sua simpatia, como alguns ilustres franceses fizeram com todo o lucro e resultado em 1865. Conto, sr. Senador, que da parte da França não nos faltará o contingente moral de que tanto precisamos para assegurar definitivamente a libertação da raça negra no Brasil. Seria a melhor celebração nacional possível de 1789.

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Eu peço ao sr. que creia em meus sentimentos devotos e respeitosos e aceite, sr. Senador, todos os meus votos por sua preciosa vida,

Joaquim Nabuco.

3. 'REPUBLICANOS FALAM ABERTAMENTE EM MATAR NEGROS'

RIO, 2 DE JANEIRO DE 1889

Meu caro José Mariano,

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Escrevo para desejar-te um feliz 89, a ti e a todos os teus, maximé a D. Olegarinha.

Tu estás neste momento, meu caro Amigo, numa posição difícil. És positivamente a esperança dos republicanos e o teu pronunciamento teria a importância de uma batalha perdida para a monarquia e ganha para a república. Eu, tu sabes, não tenho ambição política, nada quero nem espero da política hoje que a missão da minha vida está terminada, mas deixa-me dizer-te: Não te enganes! A causa do povo não é a república. Eu vi os teus apartes na Assembleia Provincial na tua antiga veia republicana e fizeste muito bem em defender homens como Maciel Pinheiro e Martins Júnior da suspeita de quererem reescravizar os libertos! Mas qualquer que seja o caráter democrático do movimento no Norte, no Sul ele é uma explosão de despeito e de rancor contra a lei de 13 de Maio.

Organizou-se nesta cidade uma chamada Guarda Negra e no domingo houve um combate entre ela e os republicanos na Sociedade Francesa de Ginástica. Os republicanos fizeram fogo sobre os sitiantes do prédio e dispararam não sei quantos tiros. Isto não promete nada bom, mas o resultado de tudo há de ser o ódio de raça, porque os republicanos falam abertamente em matar negros como se matam cães. Eu nunca pensei que tivéssemos no Brasil a guerra civil depois, em vez de antes, da abolição. Mas havemos de tê-la. O que se quer hoje é o extermínio de uma raça e, como ela é a que tem mais coragem, o resultado será uma luta encarniçada. De tudo isto eu lavo as mãos. Os liberais se subirem hão de ter um papel difícil a desempenhar.

Estou me distanciando muito de ti, não sei mesmo se serei candidato, mas em todo tempo tu terás sempre a amizade sincera do teu companheiro de tantos anos de aspiração generosa pela libertação da nossa pátria. Não teremos outro 13 de Maio! É o amor dos escravos, e o de Pernambuco, as duas paixões da minha carreira política, que me fazem hoje identificar-me com o liberalismo monárquico contra a revolução republicana. Espero ir breve a Pernambuco, mas neste momento não devo sair do Rio - estamos no meio de grandes acontecimentos de sérias consequências. No dia em que te vir passado para a República, como os republicanos esperam, terei pena do pobre povo do qual és um dos poucos sinceros amigos que tenho conhecido e terei pena de Pernambuco!

Adeus, meu caro Amigo. Muitas felicitações a D. Olegarinha pelo ano novo, e para ti um abraço apertado do teu

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Sempre certo

Joaquim Nabuco.

4. 'ABOLIÇÃO FOI UMA ESCOLA DE HUMANIDADE'

(TRECHO DE DISCURSO PROFERIDO NA ARGENTINA, SEM DATA)

A abolição foi uma escola de humanidade. Não se pedia trabalhar nela durante dez anos sem contrair o instinto da fraternidade humana. No dia em que ela se fez houve a explosão da simpatia argentina que vós sabeis. Pois bem, o abolicionismo transformou-se no partida da paz, não que haja um partido da guerra, mas porque era preciso que houvesse um núcleo de homens insuspeitos ao povo que se tornassem no Brasil os advogados da paz, da paz Americana, a paz perpétua entre as nações Americanas.

Era preciso que uma força moral, em um sentido religiosa, em todo sentido divina, que foi a força do movimento abolicionista no Brasil, não se anulasse de repente e para isso era indispensável que ela encontrasse (...) outra grandiosa utopia como se figurava ser dez anos atrás a destruição do feudalismo escravista pela simples ação de uma ideia - pobre, solitária, proscrita. Essa utopia foi a paz continental, alimentada em nossos corações com o sentimento fraternal pelo serviço dos mais desgraçados, dos ínfimos filhos da América, a raça negra, e chamada de repente à vida, à atualidade política, ao período da semeação, pelo fiat (?) do povo argentino ao 13 de Maio de 1888.

É uma utopia, mas que importa? Na América as ideias são como os homens, não precisam de pergaminhos, o colossal quando realizável atrai mais que repele a imaginação, estamos na terra de Edison, que trabalha a eletricidade como uma faculdade criadora que faz pensar. Onde parará o homem - Prometeu vai ser afinal livre...

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