A fertilidade de Poussin

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Por danielpiza
Atualização:

Na sexta passada fui finalmente ao Masp ver o resultado da restauração da tela acima, Hymeneus Travestido Assistindo uma Dança em Honra a Príapo, de Poussin. Foi um trabalho prodigioso, que restabeleceu as cores, a profundidade, a integridade da obra. A composição que tanto caracteriza Poussin - esse barroco que volta ao clássico, radicado na Roma do século 17, e abre o caminho para o neoclassicismo francês - ganhou força, mostrando o paralelo entre a faixa de movimentação horizontal (os braços que se movem como numa coreografia estudada) e a estrutura geométrica ao fundo; ao mesmo tempo, foram redescobertas suas passagens cromáticas, seus acentos sensuais - e foi dessa combinação entre o rigor e a espontaneidade que se fez seu estilo, como o de Piero della Francesca no Renascimento. Além disso, o falo da estátua central, que representa Príapo, ficou muito mais visível:

 Foto: Estadão

Fascinado com a complexidade de Poussin, li nos textos que o jovem Hymeneus (Himeneu, na versão que poderia ter sido adotada), vestido de mulher - era tão belo que se dizia parecido com uma moça - para observar a dança feminina em torno do deus da fertilidade, seria a figura do canto à direita, por ser a única que usa uma espécie de sandália:

 Foto: Estadão

Fiquei encasquetado. A figura parece ter seios e ser muito feminina em vários aspectos. (Infelizmente, não consegui uma boa reprodução dessa fração da pintura. O que vale é ir olhar "in loco".) Lá no meio, porém, há uma que me pareceu mais masculina (ou menos delicada), pelo desenho do maxilar e pela musculatura dos braços. Além disso, é a única com roupa sem decote e solta no corpo e com um cabelo que parece mais curto, ainda que preso pela guirlanda de flores com que aparece na maioria das representações:

 Foto: Estadão

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Por que então ele estaria segurando o falo da estátua? Lembre-se que Poussin não era um realista, e a própria cena se abre a diversas versões narrativas, o que é uma definição de mitologia. Talvez Poussin tenha querido justamente simbolizar que ali está Hymeneus, travestido para ficar mais próximo de sua amada. Em muitas representações, aliás, ele aparece segurando uma tocha... Conversei com o diretor do Masp, Teixeira Coelho, sobre minha hipótese, e ele me disse que há muita controvérsia sobre a afirmação de que a figura é a do canto. (O historiador Anthony Blunt achava que nem sequer se trata da história de Hymeneus, e sim apenas de uma dança em louvor a Príapo.) Ele, Teixeira, chegou a cogitar que fosse a que está atrás da estátua, mais abaixada e sombreada. Por outro lado, a figura da direita realmente se destaca das demais pelo posicionamento do cor e pelo tom das vestes - se bem que o título, com o verbo "assistindo", foi dado à pintura depois de Poussin ter morrido - e por pés que parecem maiores. Mas chega, estamos discutindo o sexo dos anjos...

Seja como for, a geometria dançante de Poussin vale por si mesma. Quem só o vê como um desenhista de cenas fixas perde boa parte de sua vitalidade. Que o restauro sirva a isto.

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