Às 10h43 de 31 de julho de 1914, o embaixador da França em São Petersburgo, Maurice Paléologue, enviou um telegrama ao Conselho de Ministros da França. Em um texto seco e sucinto, informava que o imperador da Rússia, Nicolau II, havia ordenado a mobilização das tropas de seu país, em resposta à declaração de guerra da Áustria-Hungria à Sérvia, sua aliada, três dias antes. “A Rússia mobilizou suas tropas”, escreveu.
Por razões desconhecidas, a correspondência só chegaria ao Conselho de Ministros em Paris quase 10 horas mais tarde, após outro despacho, desta vez vindo de Viena, que informava a mobilização das tropas da Áustria-Hungria contra a Rússia – uma reação ao primeiro ato hostil de São Petersburgo. Ao tomar conhecimento da iniciativa bélica dos austríacos, o governo francês não hesitou em afirmar em sua propaganda: a mobilização do exército da Áustria-Hungria comprovava a responsabilidade do país pelo início da guerra contra a Rússia e, por extensão, contra seus aliados do Ocidente.
A verdade, no entanto, era a inversa. A troca de telegramas, a ordem em que foram divulgados em Paris e o fato de que o texto foi falsificado a seguir – com o acréscimo da frase “A Rússia mobilizou suas tropas em decorrência de informações sobre as mobilizações austríaca e alemã”– são um dos tantos vestígios documentais do esforço de cada um dos países envolvidos em manipular a verdade e culpar o outro pelo início da 1.ª Guerra Mundial, mesmo antes de os combates eclodirem. Essa obsessão pela responsabilidade da guerra, decisiva nas negociações de paz e na redação do Tratado de Versalhes, em 1919, é ainda hoje uma veia aberta na Europa. Cem anos mais tarde, historiadores continuam a debater: afinal, de quem é a culpa pela tragédia?
A controvérsia no mundo acadêmico em torno do artigo 231 do Tratado de Versalhes, que responsabilizava a Alemanha, já alimentou mais de 25 mil livros e artigos, mas jamais foi de fato encerrada nesses 100 anos. Mais grave: por muito tempo, ela envenenou as relações internacionais, em especial na Europa. Em 2013, essa ferida aberta ganhou uma nova interpretação, com a publicação do livro Os Sonâmbulos - Como eclodiu a 1.ª Guerra Mundial (Companhia das Letras), de autoria do historiador australiano radicado na Grã-Bretanha Christopher Clark, professor da Universidade de Cambridge. Para o especialista em Prússia e em Alemanha, a culpa do conflito é, antes de mais nada, de “sonâmbulos” – uma metáfora para os líderes políticos e diplomatas incapazes de parar as engrenagens de uma guerra que se anunciava sanguinária desde o início do século.
Sérvia no epicentro. A polêmica reaberta por Christopher Clark, entretanto, não está na responsabilização do mundo político, mas no fato de que sua obra recoloca a Sérvia, a instabilidade dos Bálcãs e o atentado de Sarajevo de 28 de junho de 1914 no epicentro dos acontecimentos. Ao longo do século que se passou, acadêmicos que se debruçaram sobre a questão viram no atentado em si, cometido pelo jovem nacionalista sérvio Gavrilo Princip contra o arquiduque Francisco Ferdinando, apenas um fraco pretexto na decisão da Áustria-Hungria de declarar a guerra e esmagar as ambições regionais da Sérvia.
Clark, baseado em um trabalho de pesquisa em arquivos de Paris, Londres, Viena, Berlim, Moscou, Belgrado e Haia, chega à conclusão de que o fanatismo nacionalista sérvio, somado à ofensiva de potências europeias, como a Itália, contra territórios sob domínio do Império Otomano, tiveram papel crucial na eclosão do conflito. Por extensão, ao apontar o dedo sobre a Sérvia, o historiador lança luz sobre o papel dos aliados deste país, Rússia e França à frente, minimizando a importância das ambições da Áustria-Hungria e da Alemanha.
“Clark reverte essa perspectiva e diz: a Sérvia organiza uma política de potência, sai vitoriosa das guerras balcânicas de 1912 e 1913 e tem um projeto político de reunificar todos os eslavos do sul, que existem entre os austro-húngaros”, explica o historiador francês Joseph Zimet, diretor da Missão do Centenário da 1.ª Guerra Mundial. “O grande problema é que a Bósnia-Herzegovina, povoada a 55% de sérvios, é anexada pela Áustria-Hungria. Christopher Clark afirma que foi a Sérvia que provocou a 1.ª Guerra Mundial.”
Explicar a 1.ª Guerra vem sendo uma tarefa hercúlea de historiadores. Mas esse esforço resultou em alguns consensos: o início do século 20 era um tempo de corrida armamentista e militarismo exacerbado, de nacionalismos, imperialismos, disputas territoriais e jogos perigosos de alianças e inimizades internacionais entre novas e velhas potências econômicas e industriais. Guerras eram vistas não como tragédias a serem evitadas, mas como um instrumento político legítimo.
Esse cenário geopolítico tenso aproximava algumas e opunha outras superpotências da época – França, Alemanha, Áustria-Hungria, Itália, Grã-Bretanha e Rússia. Em uma era marcada pelo colonialismo, o jogo de forças não se limitava à Europa, mas se estendia às colônias e protetorados espalhados por África, Oriente Médio e Ásia. Daí à guerra mundial bastou uma faísca.
Nesse cenário, os movimentos nacionalistas da Sérvia exerceram de fato um papel desestabilizador. Desse movimento extremista participavam grupos como Mão Negra – apoiador do Jovem Bósnia, ao qual Princip pertencia –, alguns dos quais com forte presença no interior do Estado sérvio. Para a historiadora bósnia Vera Katz, pesquisadora do Instituto de História da Universidade de Sarajevo, o atentado não passou de uma gota d’água.
“As grandes potências estavam preparadas para a guerra. Havia tantas crises no mundo. Creio que foi apenas uma faísca para o começo”, diz.
Prova de que a região dos Bálcãs, um cruzamento entre ortodoxos, católicos e muçulmanos e entre o Ocidente e o Oriente em plena Europa, era um barril de pólvora, haviam sido a crise na Bósnia de 1908 e as guerras balcânicas entre Sérvia, Grécia, Montenegro e Bulgária contra o Império Otomano, em 1912, e entre a Bulgária e seus ex-aliados, em 1913. Ao final desses conflitos, escreve Clark, o equilíbrio geopolítico da região está alterado, mas a Rússia despreza as preocupações da Áustria-Hungria com a situação na península.
Segundo Clark, a aliança entre Rússia e França se aprofunda também em torno dos Bálcãs em 1912, pelas mãos do então chefe de governo francês Raymond Poincaré, que se solidariza com o imperador russo Nicolau II ao afirmar que “toda conquista territorial efetuada pela Áustria-Hungria romperia o equilíbrio europeu”. A sinergia militar entre russos e franceses ajuda a explicar por que em 37 dias a Europa partiu de um assassinato político de importância limitada a uma guerra generalizada.
Alemanha. O problema da obra de Clark, segundo seus críticos, é sobrevalorizar a importância da Sérvia e do atentado e minimizar a determinação da Alemanha para que a guerra acontecesse. Essa “determinação” se tornou uma convicção da maior parte dos especialistas no assunto em 1961, quando o historiador alemão Fritz Fischer lançou Os Objetivos de Guerra da Alemanha Imperial 1914-1918, livro em que ele diz haver uma filiação direta entre a guerra franco-prussiana, em 1870, e a 1.ª e a 2.ª Guerra Mundial, causada por uma elite industrial conservadora da Prússia com militares e meios políticos, todos com o intuito de afirmar a superpotência alemã e empreender uma política imperialista agressiva na Europa do Leste, na África e no Oriente Médio.
“Fischer comete um grave erro: ele estabelece essa espécie de fio que iria de (Otto von) Bismarck a Hitler (ambos chanceleres da Alemanha, durante a 1.ª e a 2.ª Guerra, respectivamente), com Guilherme II (rei da Prússia) no meio, algo que eu considero falso”, diz o historiador Frédéric Manfrin, diretor de História da Biblioteca Nacional da França (BnF) e comissário da exposição Été 1914, em cartaz em Paris. “Já Clark vai longe demais na tese da inocência alemã, e o papel que ele dá à Sérvia é discutível.”
A opinião de Manfrin reverbera a de outro historiador, o alemão Gerd Krumeich, professor emérito da Universidade Henrich-Heine, de Düsseldorf, autor de outro livro que reflete sobre as responsabilidades do conflito, Fogo na pólvora – Quem detonou a guerra de 1914?. Krumeich relembra uma das teses do historiador francês Pierre Renouvin, de 1932, segundo o qual não há “responsabilidade unilateral” pela guerra.
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