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Decisão do STF sobre maconha cria linha de argumento para pequeno traficante, diz promotor

Para Alexandre Daruge, do Departamento Estadual de Execução Criminal em São Paulo, descriminaliza r o porte da droga traz mais problemas do que soluções e pode facilitar o tráfico

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Foto do author Marcio Dolzan
Atualização:
Foto: ESTADAO0
Entrevista comAlexandre DarugePromotor de Justiça do Departamento Estadual de Execução Criminal e especialista em direito público

Promotor de Justiça do Departamento Estadual de Execução Criminal, Alexandre Daruge considera que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que descriminalizou e definiu parâmetros para o porte de maconha para uso pessoal, mudou pouca coisa em relação ao que já acontece na prática.

“Essa posição em relação a fazer distinção de porte de drogas e tráfico, juízes e promotores já fazem, dentro do conhecimento deles, da sensibilidade deles, em cada caso concreto”, afirmou, em entrevista ao Estadão.

Para Daruge, a decisão vai resultar em “mais problemas do que soluções”. Isso porque, se de um lado ela pode trazer alguma tranquilidade para o usuário, por outro pode facilitar o tráfico.

(A decisão) Dá um estofo para o indivíduo que é traficante. Ele pode se amoldar a essa decisão e fazer fracionamento de substâncias, convocar outras pessoas para poder traficar e tentar se inserir nesse contexto da presunção”, afirma.

Leia os principais trechos da entrevista:

Como avalia a decisão do STF que considerou que porte de maconha é ato ilícito, mas não crime?

A decisão aconteceu no julgamento do tema de repercussão geral número 506, que deriva do julgamento de um recurso extraordinário. Ou seja, havia vários casos semelhantes ao que estava sendo discutido. O que tratava aquele caso? A apreensão de três gramas de maconha num estabelecimento penal de Diadema. Cuido hoje de execução penal, e é comum lidar com faltas disciplinares relacionadas ao ingresso de drogas na unidade prisional, sobretudo indivíduos que voltam de saída temporária.

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Decisão estabelece que 40 gramas é o limite para que porte seja considerado para consumo pessoal Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O que o Supremo fez? Fixou uma tese nesse tema, há vários pontos. O item 4 da tese estabelece a presunção de que o indivíduo que estiver portando 40 gramas ou seis plantas fêmeas de maconha seria usuário. A grande questão que se coloca quando se fala em presunção no contexto jurídico é justamente se é uma presunção relativa ou absoluta. E o próprio Supremo já respondeu no item seguinte da tese que ele fixou: a presunção do item anterior é relativa.

Essa palavra é extremamente importante. [Diz o texto:] “Não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercância, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes”.

Com todo o respeito ao Supremo, na realidade essa posição em relação a fazer distinção de porte de drogas e tráfico, juízes e promotores já fazem, dentro do conhecimento deles, da sensibilidade deles, em cada caso concreto. A única novidade é que agora, se classificar a conduta como artigo 28 (da Lei de Drogas), o Supremo reconheceu a atipicidade dela.

Em 2006, a Lei de Drogas já havia esvaziado sobremaneira o alcance penal do artigo 28. Porque se olhar o artigo 28, não vê lá pena de prisão nem pena alternativa, como a pena alternativa convencional do Código Penal

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O que acho perigoso na decisão? Ela aumenta o argumento do indivíduo de que ele é usuário, podendo ser um traficante. Dá um estofo para o indivíduo que é traficante, mas ele pode se amoldar essa decisão e fazer fracionamento de substâncias, convocar outras pessoas para poder traficar e tentar se inserir nesse contexto da presunção, e sempre ter margem para poder trabalhar com essa situação. Vai trazer mais problemas do que soluções.

Críticos dessa decisão consideram que agora podem surgir “mini-mulas”, traficantes com quantidade de drogas no limite permitido…

O Supremo tomou uma cautela importante fixando no item 5 da tese que a presunção é relativa. Se não tivesse feito isso, o problema seria muito maior. O que vai acontecer é que, caso haja, por exemplo, esse cenário de mini-mulas, a Polícia Civil, a Polícia Militar, as pessoas que fazem as prisões em flagrante, terão que ter lastro probatório mais minucioso, detalhado, para afastar essa presunção.

O item 6 da tese diz que “nos casos em que a presunção de que se trata de um mero usuário será afastada, caberá ao delegado de polícia consignar no auto de prisão em flagrante justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários”.

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Existe já na própria decisão um encaminhamento para evitar esse tipo de situação. O problema é que está quase convidando o narcotráfico a tentar se aparelhar e estar sempre dentro dessa presunção, para criar mais dificuldade nas prisões de flagrante.

Por exemplo, na saída temporária: o indivíduo volta com drogas agora para a unidade prisional. Se voltar com 40 gramas de maconha para a unidade prisional, o que vai acontecer? Tráfico para tentar ingressar drogas no sistema penitenciário, inclusive, causa aumento de pena.

E se o indivíduo volta da saída temporária aportando drogas, o que vai fazer? Olha que situação delicada: o cara passa no scanner, ou na revista, que pega ele com 40 gramas. “Não, mas sou usuário. Estou respaldado pela decisão do Supremo Tribunal Federal.”

O que o sistema prisional e o agente penitenciário vão poder fazer? Em tese, se for lavrar um flagrante por tráfico, terá de ter mais lastro probatório para sustentar que esse indivíduo é traficante, não que está entrando no sistema para usar aquela droga só para ele.

Cria uma linha argumentativa em favor do traficante de pequeno porte. A partir de agora vai ser mais difícil, vai exigir mais prova, mais lastro.

A decisão vai mudar a abordagem policial?

Não acho que mude. Dificulta um pouco o trabalho do policial porque, se o indivíduo é pego e está com 40 gramas ou menos de maconha, o policial tem de trabalhar com a presunção de que se trata de um usuário de drogas. Por exemplo: o policial faz campana de um indivíduo que ele suspeitava que estivesse traficando.

Ele, policial civil, no flagrante, vê esse indivíduo vendendo drogas para outro indivíduo que estava num carro. O usuário que comprou a droga sai, e esse traficante, um pequeno traficante de uma cidade pequena, conseguiu entregar uma porção de maconha para o indivíduo e ficou com 35 gramas de maconha e uma quantidade em dinheiro. Vai poder lavrar flagrante por tráfico de drogas.

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Só que, mais do que nunca, a Polícia Civil terá de ter muito zelo na ratificação, na documentação do flagrante, das provas do caso concreto, para afastar essa presunção.

Como o parágrafo segundo do artigo 28 da Lei de Drogas foi declarado inconstitucional, não tem o crime de porte de drogas, não é um tipo penal. É uma infração administrativa processada no juízo criminal - que também é uma situação meio estranha. Mas vamos lá: para determinar se a droga destinava a ser consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida para o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente.

A gente sempre avalia casuisticamente todas essas circunstâncias que estão mencionadas aqui e várias outras que não estão mencionadas do caso concreto para distinguir se o indivíduo que está com uma quantidade de drogas grande ou pequena, se é traficante ou usuário. O Direito Penal se pauta pelo elemento subjetivo da conduta.

O STF definiu 40 gramas, parâmetro parecido com o que vem sendo usado no Uruguai. Acredita que serve também para o contexto do Brasil?

Não tenho muito conhecimento sobre o que aconteceu no Uruguai desde que essa tarifação de que tantos gramas o indivíduo é presumido usuário. Se se não sobreviver uma legislação alterando isso - sempre fica aquela disputa, porque isso não passou por processo legislativo - o Brasil é completamente diferente do Uruguai.

Primeiro, pela questão territorial. É o maior país da América Latina versus um dos menores. Seria mais fácil, em tese, fazer a gestão disso. E tem a questão de ter que definir como é a compra. Se você tiver com essa droga aqui no Brasil hoje, vai ter comprado essa droga de um traficante, porque não tem comércio de drogas. No Uruguai, tem o comércio, ficou legalizado e estruturada juridicamente a venda de drogas em estabelecimentos.

O presidente do Senado (Rodrigo Pacheco) criticou a decisão do STF e argumentou que a corte invadiu a competência do Legislativo. O Congresso vem discutindo o tema, e provavelmente vai votar uma nova lei. Concorda com a crítica?

A única coisa que eu ponderaria é o seguinte: esse recurso extraordinário, que gerou o catalogamento desse tema repetitivo, é de março de 2011 e trata de um fato que aconteceu no estabelecimento penal de Diadema em 2009. Já faz muito tempo que esse assunto está sendo discutido. Se entrar no site do Supremo e der uma avaliada nesse recurso extraordinário, verá que ele tramita desde 2011 e tem um monte de petição encartada.

Várias pessoas e instituições ingressaram como amicus curiae, amigos da corte, pra poder debater. Houve até um debate expressivo sobre o tema. O ponto é que está tratando de tipo penal. E a lei penal, pela Constituição Federal, a atribuição é do Congresso.

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Seria muito mais interessante que isso viesse através de lei, mas existe uma tendência hoje dos tribunais - em virtude dos temas repetitivos e dessas teses - de gerar posicionamentos que reflitam na sociedade inteira justamente porque tem essas ferramentas. Acaba sendo quase uma legislação, é uma interpretação da legislação que esvazia o debate, porque a palavra final já está dada. Não vejo com muito bons olhos.

Acho importante, do ponto de vista da racionalização do trabalho judicial, fixar temas repetitivos, as teses que vinculam os tribunais. Mas não pode empobrecer o debate. A gente tem de sempre pensar que os debates têm que ser plurais, toda a sociedade.

O Parlamento é quem representa a sociedade, e você não vê ali esse diálogo. Não concordo completamente com o que diz o Pacheco, mas compreendo o desgosto dele de ver os julgamentos sendo proferidos, vinculando o País inteiro. Praticamente isso está equivalendo a uma legislação, o que seria o papel do parlamento.

E causa insegurança jurídica?

O tribunal vai dizer que não, porque estabiliza uma linha de raciocínio. O problema é a insegurança institucional, de as instituições ficarem se estranhando de uma atuar como sucedânia da outra, substitutiva da outra.

Se for ver de fora, o usuário genuíno de drogas, o de maconha, vai se sentir mais tranquilo pra portar a maconha dele porque ele vai falar ‘nossa, agora não tenho mais o que ter receio de responder pelo crime’. Vai criar uma turbulência jurídica, não uma insegurança jurídica.

Por que é tão difícil chegarmos a um fator comum e razoável quando se fala de drogas no Brasil?

Tem vários discursos… Tem as linhas ideológicas que são mais favoráveis, as linhas ideológicas que são completamente contra. Falta um pouco de lastro científico. Não tenho completo conhecimento sobre o efeito de todas as drogas que existem no organismo humano.

Aparentemente, as notícias que se tem é de que são substâncias deletérias ao organismo, fazem mal. Se todo mundo se preocupasse em buscar a informação científica, para com base nela definir qual caminho seguir, a gente estaria bem fundamentado. O problema é que parece que existe um colorido ideológico aqui e ali, que deixa o debate mais difícil e menos objetivo.

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