No álbum branco de Caetano Veloso, 1969, há a faixa que Gardel já havia gravado, Cambalache, letra e música de Enrique Discépolo. Ouvíamos com um sorriso a música cantada em espanhol contendo mensagem bastante crítica ao estado de coisas, mas sem ter a menor noção de que sua feroz ironia poderia perder totalmente a graça 50 anos depois…
Daí constato que sou velho. Entre os inúmeros indícios da idade, posso começar, por exemplo, pelo meu desconforto com leituras amplas do que seja “arte”. Exemplifico com “a fonte”, ou o “urinol” de Duchamp, que é de 1917 e anterior a Cambalache. Claro que não sou competente para comentar técnica ou artisticamente isso, mas, definitivamente, não cai no meu gosto. Reconheço grande criatividade na obra, mas creio que estaria melhor numa categoria de “humor” ou “crítica” do que em “escultura”.
A conexão com Cambalache veio ao ler uma notícia de que um garoto de 12 anos conseguiu arrecadar uma pequena fortuna vendendo NFTs (sigla para “non-fungible tokens”) na internet. NFT poderia ser traduzido para “objeto insubstituível”, mas porque alguém pagaria para ter um?
A pulsão humana em colecionar coisas não é novidade, e deve ser vestígio de nossa fase de caçadores-coletores. Quem sabe foi ela que nos levou a colecionar selos, moedas e outros produtos do artifício humano, mas aqui há, também, o perigo de extrapolações mais difíceis de explicar. Lembro, por exemplo, de um artista italiano no início dos anos 60 cuja “pièce de résistance” era uma coleção de latas, numeradas e datadas, contendo fezes humanas. A obra se chamou “Merde d’Artiste”, e há exemplares ainda à venda na internet.
Como humor, como charge e como contestação, seria perfeito. Como arte, entretanto, certamente não atende a meu tacanho gosto pessoal. Voltando aos NFTs, trata-se de objetos que, com a adição de uma assinatura digital, tornam-se únicos e, assim, ganham a atenção de colecionadores interessados. Note-se aqui que a posse é apenas virtual, diferentemente das latinhas citadas acima.
Uma obra executada por meios eletrônicos pode ser assinada digitalmente, usando um processo derivado do “blockchain”, e, assim, ir à venda ou a leilão como “objeto único”. No caso do garoto, ele produziu uma coleção chamada de “Weird Whales” (baleias estranhas), constituída por 3.350 pequenos desenhos digitais de baleias com acessórios. Conseguiu vender a coleção toda em poucos dias. Há técnica precoce, arte e criatividade no trabalho dele, que merecem recompensa.
O que pode parecer um oxímoro é que, a algo que consegue ser reproduzido indefinidamente e mantendo fidelidade como é o caso das produções digitais, possa associar-se uma unicidade conceitual, um NFT. A distinção entre objetos e ideias tornou-se menos clara. Quando Tomas Jefferson afirmou que a transmissão do conhecimento e de ideias era como “acender uma vela na chama de outra”, ou seja, quem recebe a luz não a rouba de quem a repassou, certamente não tinha previsto os novos tempos.
O efeito da internet em reforçar esse comportamento é implacável: há uma compulsão universal de seguir tendências sem que se gaste tempo em pensar sobre elas. Nos dizeres do Cambalache, “vivemos misturados num mesmo lodo, todos manuseados”.
Do meu lado, reconheço que preciso de um “aggiornamento” nesses temas, mas, afinal, estou velho e de certa maneira satisfeito com minha forma de pensar e ver as coisas. Mas vou aproveitar e procurar boas ofertas de NFTs na internet para iniciar minha própria coleção!
*É ENGENHEIRO ELETRICISTA
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