Em inglês, chamamos o dente do siso de wisdom tooth, ou "dente da sabedoria", e tive recentemente que extrair um dos meus. Nunca tinha entendido o que esta parte específica do meu corpo tinha a ver com sabedoria até aquele dia.
O consultório do meu dentista fica em Manhattan e cheguei lá com uma hora de antecedência, graças às inconveniências da grade horária dos trens. Decidi caminhar até a hora da minha consulta. O dia estava lindo e, apesar do intenso calor - no verão, percebemos que Nova York e Nápoles têm a mesma latitude -, aproveitei o clima quente. O suor na nuca, o ruído cada vez mais alto do tráfego no fim da manhã, a brilhante e úmida luz do rio, até o leve aroma de queijo do lixo podre me transportaram de volta ao meu primeiro verão em Nova York, 31 anos atrás. Quando somos jovens, o fedor de uma grande cidade é um afrodisíaco, e fui levado de volta no tempo.
Depois de uma modesta odisseia de indecisão e falta de rumo, transferi-me da universidade estadual onde começara para a Universidade Columbia, no Upper West Side de Manhattan. Durante o primeiro ano, morei num pequeno quarto em West 113th Street, num prédio alto e cinzento que tinha sido uma residência para portadores de distúrbios mentais dispensados dos hospitais, que precisavam de moradia subsidiada para sobreviver, e fora convertido em dormitório. Numa medida controvertida, a cidade decidira subitamente pôr fim a esta política habitacional, despejando todas aquelas pessoas na rua. O número de sem-teto aumentou, a violência se agravou - uma jovem que caminhava pela Broadway em plena luz do dia foi esfaqueada nas costas com uma faca de cozinha por um psicótico, morrendo a seguir.
As ruas do Upper West Side eram perigosas e chegavam até a partir o coração, mas, sendo jovem e sentindo-me invencível, eu ficava extasiado ao caminhar por elas, é claro. Cheguei em agosto, semanas antes do início das aulas, numa época do fim do verão em que a cidade é como um navio abandonado, ondulando por mares estranhos como num sonho em que tudo poderia acontecer.
Passei dias entre as prateleiras das livrarias. Tomava o café da manhã numa livraria da Broadway que oferecia café, um croissant e um exemplar do New York Times por US$ 1,50. Depois conheci outra loja chamada Papyrus, a alguns quarteirões de distância, que vendia principalmente livros novos, prateleiras e mais prateleiras de Clássicos da Penguin com suas lombadas brancas e pretas: uma formalidade terna e acolhedora. A partir de lá, caminhei para o leste, para a Amsterdam Avenue, atravessando o grandioso câmpus de Columbia. Lá entrei num sebo que era como algo saído dos Contos de Grimm, composto por cômodos vastos e caóticos repletos de livros empoeirados sobre todos os temas. Passava horas conhecendo aquele lugar por meio da leitura - devo ter obtido ali dois diplomas de doutorado. Seus proprietários eram um pai e seu filho, um par estranho e excêntrico, que às vezes vendiam seus livros em mesas longas nas ruas, suando e sorrindo e conversando animados com as pessoas que paravam para ver os títulos expostos. O filho tinha algum tipo de deficiência mental, e o pai o mantinha trabalhando ao seu lado.
Nas noites, eu ia um pouco mais longe na Broadway até um cinema chamado Thalia (é possível vê-lo em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen) que exibia filmes de arte. Às vezes, os proprietários passavam filmes mudos e contratavam um pianista para acompanhá-los num velho piano vertical posicionado imediatamente sob a tela. Era fresco lá dentro e, entre o clima agradável e a tela encantada, era possível perder nossa ambição de abrir caminho pelo mundo quente e fedorento do lado de fora daquelas portas.
Havia dias em que eu trocava os livros pela música e passava o dia numa loja chamada Tower Records, perto do Lincoln Center, cuja construção eu tinha acompanhado quando menino, levado até lá por meu tio Jack, que era casado com uma cantora de ópera austríaca chamada Fritzi, e que tinha a distinção de ter escrito o primeiro romance barato sobre o sexo inter-racial. Jack tinha combatido na 2.ª Guerra e um dia me levou de volta ao seu apartamento, onde conquistou minha eterna admiração ao me mostrar uma Beretta que ele disse ter tirado de um soldado italiano morto.
Na Tower Records, percorri os rumos da música clássica e da ópera e obtive um terceiro doutorado, em história da música, ao ler os encartes de praticamente todos os álbuns sérios já compostos. Como meu pai e dois de meus tios eram pianistas, guardei na memória os nomes de todos os grandes pianistas; recitava os nomes deles para mim mesmo quando emergia novamente na Broadway: Moiseiwitsch, Hofmann, Schnabel, Horowitz, Rubinstein, Richter, Brendel, Lipatti, Gilels, Ashkenazy… Quando chegava em casa, estava embriagado da companhia fantasmagórica destas figuras, que devem também ter me fornecido um elo secreto com meu pai.
Uma grande cidade é sempre uma revelação da natureza implacável do tempo. Uma cidade moderna do capitalismo tardio é um reino mágico de possibilidades e uma cripta de antigas afinidades, tudo ao mesmo tempo. Todas essas pessoas e lugares tinham agora desaparecido, todas as livrarias, o Thalia, a Tower Records. Meu pai morreu, bem como Jack e Fritzi, e sabe-se lá o que aconteceu com aquele homem e seu filho que ficavam ao lado um do outro e vendiam livros em suas longas mesas durante tantos anos.
E, ao me acomodar na cadeira do dentista, percebi que é por isso que chamamos o siso de dente da sabedoria. Mais cedo ou mais tarde, ele precisa necessariamente ser arrancado; mais cedo ou mais tarde, por maior que tenha sido a proximidade entre vocês, é preciso livrar-se dele. "Quer um pouco de gás?", perguntou-me o dentista. "Ajuda a relaxar." Recusei. Por que arruinar a lição?
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