Com o voto de Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quarta-feira, 2, o julgamento da descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. A Corte irá analisar a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que prevê penas aos usuários. Especialistas ouvidos pelo Estadão afirmam que a discussão é complexa e apontam diferenças na legislação internacional sobre o tema.
No início do julgamento, em 2015, o ministro Luís Roberto Barroso sugeriu o limite de 25 gramas para definir o porte pessoal de maconha, com base em legislação de Portugal. Se essa for a “régua” adotada, 31% dos processos por tráfico de drogas em que houve apreensão de cannabis poderiam em tese ser reclassificados como porte pessoal no País, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ao mesmo tempo, 27% dos condenados nesses mesmos termos poderiam ter os julgamentos revistos.
A Corte analisa recurso extraordinário da Defensoria Pública de São Paulo que contesta a punição prevista especificamente para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal”. O órgão parte do caso de um condenado por portar 3 gramas de maconha.
Segundo o artigo 28 da Lei de Drogas, as penas variam entre “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. Até aqui, além de Barroso, dois ministros já votaram e, embora com algumas divergências pontuais, foram a favor da descriminalização do porte: Gilmar Mendes, relator do caso, e Edson Fachin.
Especialistas divergem sobre o tema. Uma parcela acredita que definir critérios pode evitar condenações injustas e reduzir a subjetividade, incluindo o risco de viés racial, nas análises da polícia e do Judiciário sobre casos de apreensões de drogas e diminuir o encarceramento. Já outras correntes veem fortalecimento do alcance de facções criminosas com a descriminalização e possibilidade de aumento do número de usuários.
Para o procurador do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) Márcio Sergio Christino, é contraditório discutir a descriminalização sem tratar da regulação de mercado. “A simples liberação do consumo de drogas, por um direito à intimidade, traz consequências danosas para a sociedade”, diz. “Principalmente na questão do crime organizado, já que vai se criar uma demanda para a qual há necessidade de fornecimento e de se incrementar o mercado. Não existe compra sem venda.”
A descriminalização, segundo ele, pode acarretar inclusive em uma reorganização do tráfico pelo crime organizado. “Há várias formas de tráfico. Entre elas, está o pequeno tráfico, que a gente chama de ‘tráfico formiguinha’”, afirma. “A restrição a ele vai ficar muito mais difícil, porque está legitimando essa posse de drogas. O que já é difícil vai ficar pior. O PCC (Primeiro Comando da Capital) agradece, vai começar a vender mais do que já vende hoje.”
Ao mesmo tempo, o procurador afirma ser contra a descriminalização mesmo em um contexto hipotético em que haja regulação desse mercado no País. “Não necessariamente iria enfraquecer o crime organizado. Por uma razão muito simples: a regulação de mercado foi parcial em outros países. Houve principalmente liberação do consumo de maconha, mas a cocaína, o crack, LSD, as outras não”, afirma. “E hoje o forte do tráfico não é a maconha, é a cocaína.”
Parte das entidades da área de saúde, como a Associação Brasileira de Psiquiatria e o Conselho Federal de Medicina, também já se posicionou contra a descriminalização. Eventual decisão do Supremo nesse sentido, disse manifesto das entidades divulgado em 2015, quando começou o julgamento, terá como “resultado prático o aumento deste consumo e a multiplicação de usuários”.
Guilherme Carnelós, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), tem posição contrária. Ele afirma não ver sentido em dizer que a descriminalização do porte abre brechas para o tráfico de drogas. “É um discurso muito mais moralista do que técnico, porque ninguém deixa de consumir drogas porque é proibido”, diz.
Segundo ele, o julgamento da descriminalização do porte de drogas passa sobretudo pela discussão do racismo estrutural nas atividades policial e judiciária. “O olhar policial é muito diferente quando se está tratando de um possível suspeito que é branco, e que transita por um bairro nobre, e um suspeito que é negro e transita pela periferia”, afirma. “Esse é o grande problema.”
Com a definição de limites para porte, Carnelós diz que o viés mais subjetivo nos indiciamentos pode diminuir. Ele reconhece que não existe consenso sobre qual é a “régua” ideal, mas avalia ser importante discutir o tema. “Cada país regula o direito penal de acordo com sua realidade, não dá para a gente simplesmente copiar modelos”, diz. “Podemos nos inspirar em outros modelos, mas acho que a gente precisa produzir o nosso próprio.”
Pesquisadora do Instituto Igarapé, Marina Alkmim afirma que a subjetividade dos critérios adotados hoje pela lei gera impactos “consideravelmente negativos na incriminação de usuários”. “Por não prever parâmetros objetivos de quantificação que diferenciam o consumo do tráfico, injustiças continuam sendo perpetuadas”, diz.
Na avaliação dela, Portugal, país usado como referência por Barroso, possui valores de referência baixos para a distinção entre consumo e tráfico tanto para cannabis, como também para ecstasy, heroína e cocaína. “O país descriminaliza todas as drogas para uso desde 2001 e é referência também por trazer a pauta para o campo da saúde pública, retirando-a da esfera criminal, mas possui parâmetros de quantidade para consumo nos valores de 25g de ervas de cannabis”, diz Marina.
A pesquisadora afirma que os Estados Unidos, por sua vez, possuem valores de referência para porte significativamente mais altos em alguns Estados, como nos exemplos de Maine, que permite portar até 2,5 ‘onças’ (o equivalente a 70 g de maconha), Nova Iorque, que permite até 3 ‘onças’ (85 g), e Nova Jersey, que permite até 6 ‘onças’ (170 g).
Alguns países, ainda segundo Marina, adotam critérios objetivos de quantidade só para a maconha, outros contemplam mais drogas, como cocaína, heroína e opiáceos. “Colômbia, Peru e México adotam parâmetros de quantidades objetivas para outras substâncias”, diz. O limite para porte de cannabis nesses locais varia de 5 g a 20 g. Já para a cocaína, de 0,5 g a 5 g. “Nas Américas, 19 países adotam critérios de quantidade para distinguir consumo de tráfico.”
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